quarta-feira, 29 de abril de 2020

Tia


A minha cesta do pão está a precisar de restauro. Aqui e ali, sobretudo no laço que remata a tampa, o entrançado de palma está a desfazer-se. Está assim, há bastante tempo, e bem sei que, mesmo antes do triste desfecho, não seria já a tia a resolver-me o problema, mas agora, olho para a cesta de empreita velhinha, que em tempos fez para mim, e entristeço-me um pouco mais.

No caderno das receitas, tenho as instruções para fazer os biscoitos que fazia e de que tanto gosto. A respetiva entrada traz o seu nome,  não o de batismo, mas o que sempre foi usado por toda a família. Penso que deveria aproveitar as tendências de ocupação deste tempo do confinamento para pôr em prática a receita. Assim me chegue o ânimo para isso.

Tenho pois, tia, estes dois projetos por realizar e já que de vida e de morte são feitos os dias, mesmo que chore quem parte, devo sobretudo celebrar-lhe a vida.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

domingo, 26 de abril de 2020

sábado, 25 de abril de 2020

Cravo vermelho, ao gosto popular




Não tinha cravo vermelho
No canteiro do jardim
Para celebrar abril
Tive de desenhar um assim.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Falta de prática


Já preciso de reabastecer a despensa. O frigorífica está quase vazio. Da farmácia também já me davam jeito alguns produtos. Ontem pensei tratar do caso hoje. Hoje resolvi que amanhã é que vai ser. À força do hábito de não sair de casa, vou adiando a tarefa. Quando começar o desconfinamento, a minha falta de prática vai estar a um nível tal, que já nem saberei como andar por aí.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Sorriso


                                                            quero                ver-te

                                                                            
                                                                             a
       


                                                        s                                        r
                                                              o                              i
                                                                        r           r


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Escape


Assisto ao treino diário dos pombos de algum vizinho da aldeia. Vejo-os da minha varanda, a norte. Vão e vêm, numa voo mil vezes repetido. Num determinado ponto, ficam ocultos pelos ramos mais altos das árvores, mas logo surgem, do lado oposto, velozes, sobre as nuvens. Entretenho-me a observá-los até que deixam de aparecer, regressados ao pombal. A sul, na estrada, com rota demarcada, caminham os confinados, em grupos não maiores de dois. Também os observo da minha varanda, em breve escape às paredes de casa.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

Buzêlhão*


Neste momento, ao passar a mão pelo queixo, já a sinto nitidamente. Via-a esta manhã, quando me olhei ao espelho durante as primeiras abluções do dia. Era só o que me faltava. Estou bonita, sim senhor. Os olhos a afundarem, o queixo a descair, as rugas a instalarem-e, aqui e ali uma penugem indesejada, o cabelo já sem corte e agora uma borbulha horrenda que vai levar dias a desaparecer. Vá que o confinamento foi prolongado, que os contactos sociais são diminutos e que até já fiz uma máscara caseira para quando tenho de sair às compras.

* inchaço, tumor, buzilhão, besilhão
(Dicionário do Falar Algarvio)

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Um instante


De forma inusitada, uma gaivota sobrevoou esta tarde a minha varanda. Ainda corri a apanhar a máquina querendo registar o instante, mas porque foi isso mesmo, apenas um instante, já não a voltei a ver, nem percebi para onde desviou, entretanto, a sua rota. Cansada de olhar para o céu, onde apenas se expandiam as nuvens em claro cinza, olhei para baixo e notei uma certa tristeza no olhar de um gato que esperava, não sei bem o quê, no meio das flores do campo.

A voz


Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido

os dedos que me
vogam
nos cabelos

e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...

Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...

Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.





quarta-feira, 15 de abril de 2020

Bons fígados


À falta de estarmos juntos a uma mesa, as videochamadas diárias para conversar com a minha prole incluem sempre o tema incontornável da comida. Centramo-nos na cozinha e no prato do dia de cada um, por vezes acertamos na hora da refeição e acabamos por partilhá-la virtualmente.
Blerk, vocalizou a minha filha quando lhe disse que hoje tinha sido iscas. Ca nojo, reforçou ela, que agora está virada de costas para a carne, mais ainda para as vísceras. Já o meu filho lamentou-se por não as comer – as iscas – há demasiado tempo. Pois, hoje fiz iscas, como sempre vi a minha mãe fazer, cortadas em pedaços pequenos, temperadas com sal, alho, salsa, pimentão, vinagre, vinho e louro, cozinhadas em azeite e um pouco de água à medida que o molho ia secando, para o manter no ponto. Nham, digo eu, contrariando a minha filha. Estavam muito saborosas e para tempos de confinamento, a comida que nos satisfaz também ajuda a manter os nossos bons fígados.

Verde esperança

Foto © O cantinho da Janita

bem me anima
o verde esperança
do azevinho



terça-feira, 14 de abril de 2020

Lápis


Tenho a mania - uma mania como outra qualquer – que um dia ainda consigo desenhar alguma coisa de jeito. Ver desenhar é um gosto que tenho, sigo ilustradores que mostram os seus trabalhos em redes sociais e tudo me parece fácil. Mas não é. Dizem que é preciso treino. E se calhar disciplina para o dito treino, que é coisa que eu não tenho. Vou comprando cadernos, lápis, canetas, tintas, pincéis, mas sou como uma criança mimada, que pega no brinquedo uma vez e logo se cansa dele. Não resulta na maravilha que eu espero e logo arrumo o material, até ao próximo impulso. Dizem que é preciso desenhar todos os dias. Já pensei que podia aproveitar o tempo de deslocação para o trabalho, que agora não gasto, para exercitar a mão e o traço. Ontem até desencantei, na gaveta da secretária, um conjunto de lápis por estrear. Estreei dois e parece-me que os outros estão todos a pedir uso. Vou tentar fazer-lhes a vontade.



domingo, 12 de abril de 2020

Passeio de domingo (485)


Em cor-de-rosa, um não passeio de domingo composto de vários dias, de campo e de canteiro, para vos desejar Boa Páscoa.








sexta-feira, 10 de abril de 2020

Paixão

Pai do Céu*


Este é o Cristo que resgatei há muitos anos - tantos que não lhes tenho a conta - de um nicho que os pedreiros iam tapar na casa da minha avó. É de madeira, esculpido certamente por algum pinta-santo, designação dada a esses artesãos populares do Algarve que, até à primeira metade do século XX, reproduziam imagens do Menino Jesus e de Jesus crucificado. Salvei, pois, a imagem de ficar sepultada numa parede velha e, também há muitos anos, levei-a a restaurar porque tinha tinta indesejável na cruz. Desde então, figura na pequena peanha que adorna uma parede do meu quarto. Olho para ele e, apesar do sofrimento que representa, vejo um rosto doce, um rosto de paz, quase um sorriso.



*
“O século XIX foi a época do aparecimento dos pinta-santos ou faz-santos algarvios. Estes procuram reproduzir as imagens feitas pelos imaginários, sobretudo o Menino Jesus e o Jesus crucificado, que, no Algarve, se chama Pai do Céu.”

Pe. José da Cunha Duarte, Natal do Algarve – raízes medievais, Ed. Colibri, 2002.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Folares


Era a minha mãe quem os fazia. Juntos os ingredientes, sem que faltasse a canela e a erva doce, amassava como quem amassa o pão e deixava a massa a levedar em alguidar de barro embrulhado num pequeno cobertor. Crescida a massa, moldava os folares, com ovo alguns, outros simples. Preparava, entretanto, o forno de lenha onde os colocava para cozer. Nunca cheguei a fazê-los com ela. Não aprendi e nem sei tratar do forno que se mantém há tantos anos frio, lá atrás no quintal. Perdi este saber, não acautelei a herança. Hoje tive de me contentar com uma receita de folar, não de amassar, mas de bater, que diligentemente segui. Não foi mau o resultado. Mesmo cozido em forno elétrico, cumpriu a tradição da época e adoçou-me o chá da tarde.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

De novo, a primavera


ah as flores do campo,
ah os dias mais amenos (dependendo dos dias…),
ah as mil chuvas de abril,
ah o tempo dos caracóis e dos petiscos
(em casa como é bom de ver…),
ah os dias maiores,
ah as andorinhas volteando nos céus,
ah o canto das aves… só o canto, não.

mudo então a interjeição,
mudo também a entoação.

ai os malvados pássaros que de novo me sujam o pátio,
ai que lá tenho que agarrar na vassoura e na mangueira
com redobrada frequência,
ai que canseira
ai que já não tenho paciência.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Lua


A notícia do jornal eletrónico falava da super lua que havia de chegar ao perigeu algum tempo depois das seis da tarde. Desliguei, pois, o teletrabalho e saí porta fora, máquina em punho, em busca dela. Contrariaram o meu desejo as nuvens gordas que se amontoavam na direção em que, naquela hora, a deveria ver. Com o intento frustrado, rondei as cercas de casa, apontei aos passarinhos, a uma pequena flor silvestre e ao botão de rosa que se erguia junto à rede. Só agora, já ela vai alta, a consegui ver.



sábado, 4 de abril de 2020

How insensitive




[Notei que, há algum tempo já, tinha guardado esta música em post rascunho. Passo-a a limpo, para post de um dia em que tenho as palavras  em isolamento social]

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Sobressalto


Fechei o expediente o mais cedo que o ponto, que tenho que picar à “teledistância”, me permitiu para ir à farmácia aviar os medicamentos do meu progenitor e de outro familiar necessitado. Na porta ao lado da farmácia, aproveitei para procedimentos de multibanco, atenta a utilizar um só dedo no toque das teclas e a desinfetá-lo de imediato, bem como aos restantes nove, com o gel transportado em pequeno frasco na algibeira das calças. Faltava-me ainda um abastecimento alimentar de supermercado, que resolvi fazer usando um lenço à bandoleiro para me tapar boca e nariz, já que máscaras não há. Ia receosa do vírus e da minha figurinha mas logo me deparei com mais gente em preparos semelhantes. Sobre a eficácia da solução improvisada não tenho certezas, mas que me ajudou um pouco no alívio ao sobressalto provocado pelo espirro de um cliente e pela tosse de outro, lá isso ajudou.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Lua


Apesar do frio e do vento, nos intervalos da chuva, quando as nuvens ficam mais leves, eu saio à varanda para espreitar o mundo, aquele mundo que não vai além das casas vizinhas, do caminho de ferro que atravessa o meu campo de visão em paralelo com a estrada nacional, das hortas e do pinhal. Ao longe os hotéis e uma nesga de mar a debruar o céu. Bem sobre a minha cabeça, avisto, ainda a meio da tarde, a metade da lua que cresce. Entre as muitas saudades que agora me mordem a alma, reconheci a saudade que eu já tinha de ver a lua.