quinta-feira, 29 de junho de 2017

Sono bom

Na maior parte das vezes é recostada na cama que leio. Já aqui o disse, mas se calhar os blogs, tal como a vida, são lugares de repetição. Repito-o, portanto. Gosto de ler com a cabeceira da cama e a almofada por encosto. Dependendo do livro e dos dias, ou melhor dizendo das noites, e do meu grau de cansaço, assim posso estar até já não poder estar com o posterior dormente do afinco na posição, como posso, em pouco tempo, descair mole e lentamente, para a esquerda ou para a direita, levada pela força de Hypnos e pela chamada de Morfeu. No segundo caso fico a dever à leitura, mas não ao prazer. Aquela sonolência que se apodera de mim até me agrada. Fico ali, no aconchego da almofada, agarrada ao livro. Se ele me escorrega ligeiramente da mão e perco a página onde ia logo volto à vigília, procuro o lugar onde me encontrava, releio o parágrafo já lido e sigo no enredo até a os olhos começarem a fechar-se de novo e a cabeça descair. Assim fico, neste vai e não vai, neste lê e não lê, neste dorme e não dorme, sempre agarrada ao livro, sentindo-lhe a maior ou menor dureza da capa, a maior ou menor espessura das folhas, o cheiro do papel mais ou menos intenso, mais ou menos velho, escorregando na cama, puxando a almofada, ajeitando o corpo. É um sono bom este que me dá quando abraço um livro.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Habitar uma pausa



























Desejaria habitar uma pausa da folhagem
em que estar seria adormecer o ardor intenso
espalhando-o na brisa com a leveza da paz.
Estar, estar deslumbrado, difundido,
estremecendo na igualdade pura do corpo ao espaço,
fluindo no serpenteamento dos leves labirintos,
ampliando no nimbo a intensa influência
da remota matéria no enigma da presença.
Reina o silêncio numa surpresa imóvel
e cresce na sombra uma serena cascata
em que já não há diferença entre o sonho da vida
e o corpo feliz da inteligência.

António Ramos Rosa

Facilidade do Ar, Ed. Caminho, 1990.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Barrela

Saí à rua, já ao crepúsculo, e as cores do céu falaram comigo dizendo-me que estavam mortinhas para deslizarem até à minha folha de papel virtual, onde se acomodariam, se possível numa forma poética, para gozo dos olhos em breve leitura. Acenei-lhes que sim, que, entretanto, se podiam acomodar no meu bolso porque ainda me faltava tratar de alguns assuntos práticos, imprescindíveis e inadiáveis. E lá voltei para casa onde tinha desde ontem uma fronha ensaboada de azul e branco, daquele azul e branco que costuma comer manchas e amarelados diversos. Dediquei-me, pois, a esfregar a fronha. Um pouco mais de água, força nas mãos, esfrega de um lado, esfrega do outro, enxagua uma, enxagua duas, torce bem, torce melhor, estende, observa… Ainda não está como deve. A pensar nas cores do céu poente ainda em sossego na algibeira, decido-me por colocar a fronha de molho mais alguns minutos, desta vez com o auxílio da lixívia. É lixívia perfumada, mas mesmo assim é pouco poética. Enquanto a fronha branqueia, temo pelas cores do poente que, não tarda, se transfigurarão em noite escura. Ainda chego de fugida ao branco da folha e tento resgatar o encantador lusco-fusco das profundezas do meu bolso. A operação não corre bem e já os minutos de demolha da fronha se esgotam. Retorno ao alguidar e às águas correntes. Depois de muitas águas passadas, de espremida e torcida a fronha, volto à rua, rumo ao estendal. As cores do céu desvaneceram-se, a noite caiu e nem a lua, que hoje se oferece como vírgula para pontuar o texto, me resolve a situação. Conformo-me. Não há poesia que resista a uma barrela.

Delito de Opinião

Hoje escrevo na rubrica de convidados do blog Delito de Opinião.
Obrigada, Pedro Correia, pela oportunidade que me dá de pisar a vossa passadeira vermelha.

domingo, 25 de junho de 2017

Passeio de domingo (363)


Num dia em que o tempo para passeio foi diminuto, tratei de  ver, mais uma vez, como estava o campo aqui nas imediações de casa.









sexta-feira, 23 de junho de 2017

De novo as noites quentes

De novo as noites quentes e debruço-me na varanda sobre a diminuta luz de um ocaso sem rubro no céu. As paredes quase queimam, ainda. Sinto-lhes o bafo de encontro ao meu ventre enquanto apoio os braços no rebordo que me separa do ar. Lá em baixo ouve-se um frescor. A água da rega canta num doce murmúrio enquanto anima as dálias do canteiro que borda a rua. E as roseiras. E os brincos-de-princesa. Queria-me agora flor, de pés firmados na terra molhada. Queria-me agora flor recebendo as gotas aspergidas pelas mangueiras. Acende-se, entretanto, o candeeiro público, aqui junto ao meu quintal. Cai a noite. Cessa a rega. Cantam os grilos.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Verão

Verão 1

Neste começo deste verão, a longa história da minha terra mostra-se em Lisboa, no Museu Nacional de Arqueologia. Parece que tenho um ano para visitar a exposição. Faço a mim própria um aviso: Vê se não deixas para o último dia.

Verão 2

Como acredito que o tema férias interessa a muitos, como acredito que muitos virão passá-las na minha terra, como acredito que sugestões são sempre bem-vindas, partilho as que, ao que parece, irão semanalmente ser dadas aqui como #achadosasul.

domingo, 18 de junho de 2017

Passeio de domingo (362)


Um giro repartido entre Santa Luzia  e a Fuzeta, num horário pouco propício à fotografia.








sábado, 17 de junho de 2017

Alerta laranja

Onde me encontro, dizem que o alerta não chega a vermelho mas só em laranja é já suficiente para me desfazer o corpo em água e sal enquanto se me desconjuntam as palavras, me fenece pontuação e me secam as ideias. Soltam-se de mim totalmente encarquilhadas e basta um sopro de vento para as desfazer em irrecuperáveis migalhas. Pobres coitadas que nem as aves lhes pegam. 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Tapete

Acordei deitada no tapete sem conseguir lembrar-me dos últimos sonhos. Estava toda enrolada e doía-me o corpo. Doía-me por fora e por dentro. Doía-me também o espaço à minha volta e se estendia um braço ou uma perna esse espaço era um queixume só. Esfreguei os olhos e esforcei-me por perceber porque me encontrava ali, assim. Não percebia o que se estava a passar. A custo levantei a cabeça, depois o tronco. Olhei em volta e finalmente entendi. O meu tapete voador estava avariado.


quarta-feira, 14 de junho de 2017

Vingança

O calor obrigou as janelas a ficarem abertas durante a noite mas as janelas avisaram logo que só ficariam abertas se eu ligasse o inseticida elétrico, coisa que fiz sem refilar e me permitiu dormir em sossego. O mosquito, que é esperto, tapou o nariz, atravessou o quarto, saiu para o corredor e refugiou-se no escritório. Passou a noite sem alimento e agora, em plena luz do dia, sem pingo de vergonha e de espírito vingativo, sai de uma fresta aberta entre dois livros, vem zumbir-me aos ouvidos e morde-me despudoradamente no braço direito.

Caracóis

O espaço é pequeno, os comensais quase roçam uns nos outros. À minha esquerda, a centímetros de mim, quatro mãos atravessam a mesa, tocam-se a meio, esquecem-se do pedido. À minha frente, também há quatro mãos. Estas apenas se atarefam sobre um prato de caracóis.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Para uma geografia do calçado

O homem das crocs azul-turquesa que mais tarde passou a calçar all stars amarelos apresenta agora escolhas de calçado cada vez mais ecléticas. Vejo-lhe os pés em sapatilhas brancas, em sandálias castanhas, em havaianas verdes. A voz, que ouço ao passar por ele, sempre sentado, mantém-se grossa. A escolha dos lugares onde se senta a ver passar o mundo é que parece acompanhar as mudanças que lhe observo nos pés. No tempo das crocs azul-turquesa era a avenida o seu cenário. Com as all stars amarelas aproximou-se da baixa da cidade e por palco escolheu uma esplanada de café. Agora atua num banco público da rua das lojas. Vou-lhe acompanhando o trajeto e, a confirmar-se a tendência geográfica de descer para sul, estimo que dentro de algum tempo só o conseguirei avistar à beira da doca de Faro.

domingo, 11 de junho de 2017

Passeio de domingo (361)


Saí pela encosta atrás de casa na expectativa de caçar alguma libelinha mas só encontrei calor e bicho feio.









sábado, 10 de junho de 2017

O tempo que se vai não torna mais



Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda m'enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
e se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,
porque estes tão ligeiros que passais,
nem todos para um gosto são iguais, 
nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
que quási é outra cousa; porque os dias
têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
que do contentamento são espias.

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Conluio

Está aí de novo a lua cheia. Começo a vê-la nos fins de tarde quando o azul do céu se amacia e ela vai deslizando, suavemente, para o alto, cada vez mais alto, até à noite escura. De bola de algodão doce que me sela os dias passa, em poucas horas, a suave luminária que me aclara as noites. Aparece-me assim meio tímida e depois impõe-se brilhante, misteriosa, sedutora. Não vou escrever nada sobre a lua, penso a cada uma que passa. O que interessa isso da lua que sempre se repete? Não há novidade alguma para contar. É sempre a mesma lua mas como sempre apodera-se de mim. Continuo incapaz de lhe resistir. Está aí de novo a lua cheia  e quase parece que chega de conluio ou como feitiço engendrado por ti.

Do virtual ao real

Há pessoas que traçam caminhos. Há trilhos que nos levam às pessoas. Há um novo trilho pronto a percorrer e este conduz ao dia 8 de outubro2017 e a mais um encontro de bloggers

terça-feira, 6 de junho de 2017

Uma questão de peso

É senhora para mais alguma idade do que a minha ou pelo menos assim ouso pensar, embora tenha consciência de que, cada vez mais, o meu espírito se desencontra do meu físico e só o espelho tem o poder de os reaproximar. A senhora, que vejo mais velha do que eu, aguarda a consulta da sua mãe, essa sim já velhinha, sentada na cadeira que está ao meu lado. O nosso consultório é porta com porta com o de pediatria e da posição em que nos encontramos, observamos as entradas e saídas da médica pediatra que está de serviço e que aos meus olhos aparenta ser pouco mais nova do que eu. Comenta então a minha vizinha de sala de espera: Já viu estas médicas de agora, tão pequenas e franzinas… Nem parecem médicas. Não imagino qual seria o tamanho e o peso adequado para um médico mas concluo que médica é coisa que eu nunca poderia ter sido.

domingo, 4 de junho de 2017

Passeio de domingo (360)


De volta ao campo, nas imediações de casa, com muita atenção onde colocar os pés e quase sem sair do trilho marcado por anos de passagem.









Uma arte doce e amarga

Certo dia que jamais esqueceria, aproximou-se de Ercilla num momento em que este, afastado de todos, se entregava ao estranho ofício de embeber uma pena de ganso numa poção escura e com ela traçar estranhos sinais sobre o que lhe pareceu ser a mais fina e branca das peles.
Estavam em Santiago del  Nuevo Extremo e o soldado recobrava forças após uma campanha contra os índios que os de Atacama conheciam como mapuches e que os espanhóis chamavam araucanos. Divertido com a curiosidade do índio, interrompeu o que fazia.
- Queres saber o que faço? Escrevo, Martín, escrevo.
O silêncio do índio encorajou-o a continuar.
- Escrever é desenhar e juntar letras, elas formam palavras e com as palavras posso contar tudo o que vi. Estas letras formaram palavras e elas contam como são as pessoas da Araucania. (…)
- Que mais pode escrever? – Insistiu com o olhar cravado naqueles pequenos sinais escuros.
- O que eu quiser. Tudo.
- Também os sonhos?
-Também os sonhos, se estes forem castos e não incitarem ao pecado – concluiu o soldado.
Por essa razão eram fortes os castelhanos, disse então para consigo Martín Alonso Luna. Podiam conservar os sonhos a salvo dos fungos do esquecimento e voltar a eles uma, cem, quantas vezes quisessem.
-Quero escrever, implorou. E um motivo insondável levou o soldado-poeta a instruí-lo na arte doce e amarga das letras.

Luis Sepúlveda
“Desventura final do capitão Valdemar do Alentejo”,  A lâmpada de Aladino e outras histórias para vencer o esquecimento, Porto Editora, 2008.

sábado, 3 de junho de 2017

Outfits

Ao fim de semana, nas áreas comercias, já não se vê gente em fato de treino. Agora é só roupa de fitness. Na fila para a caixa do supermercado, à frente do meu carrinho de compras, desenham-se os glúteos de uma mulher com legginsg azuis raiadas de preto. Já no elevador, a descer para o estacionamento, entra atrás de mim outra mulher. Ouço um estalo de pastilha elástica mesmo antes da porta se abrir e de ela me passar à frente, muito direita (postura que eu também deveria adotar porque senão ainda fico marreca), muito musculada, de madeixas muito californianas, envergando uma roupa de ginásio de reduzido pano, seguindo a caminho do seu carro.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Estar com os copos


Operação selinho blog em bom

Estava eu em descanso forçado do blogue porque calhou o chaço do computador ter ido abaixo e, chaço que é, leva eternidades a arrancar, e vai daí, via telemóvel  -  ou telefone esperto como diria a Susana – dou-me conta de ter sido nomeada, precisamente pela doce Susana, para uma operação blogosférica da mais elevada estirpe, daquelas que conseguem aliar o salutar convívio bloguístico à mais fina ironia, numa divertida brincadeira – para já não falar de uma grande causa ecológica – e, caramba, vejo que tenho 24 horas para tratar do assunto e percebo que o computador só vai voltar à vida  alta noite, quando eu já estiver a dormir, e que o dia seguinte é de trabalho, e que nem a hora de almoço vai estar livre porque já marquei com amigos no restaurante,  e que não me ajeito a tratar da coisa com o telemóvel e, por isso, é provável que o prazo esgote e lá vou eu ficar com um tremendo peso na consciência por causa do panda bebé… 

Oh Deus, como é difícil ser blogger!

Enfim. Dizem as regras que os nomeados devem indicar o blog mesmo bom que gostariam de ser. Mas como é que eu posso fazer isso se este mundo até está cheio de blogs bons  e eu gosto de uns por isto e gosto de outros por aquilo? Logo eu, que nunca sou capaz de indicar qual é a minha cor preferida, nem de que comida gosto mais, nem tão pouco do filme que mais me marcou, nem sequer do livro da minha vida e muito menos do meu autor de eleição.  Uma pessoa assim, irremediavelmente indecisa, dividida entre gostos, não tem  a menor capacidade para nomear um só blog, embora possa e deva  salientar aqui o ideólogo  desta inédita e original iniciativa – Pipoco Mais Salgado – e também a brilhante criadora do genial selinho que ora aqui se expõe – Palmier Encoberto.

Tchanan!

Dizem ainda as regras que devo nomear cinco bloggers para dar seguimento a esta campanha de eleição de blogs em bom a favor do panda bebé . Mas porquê cinco, senhores?  Eu sou indecisa mas sou mãos largas e por isso decido nomear todos os que se encontram na minha barra lateral, ali onde se vê quem está ao virar da esquina.

Ufa… Sou capaz de ter chegado a tempo. Obrigada Susana.

E por aí, oh blogs em bom do meu bairro, cá estão as tais regras:

"Foste envolvida(o) no movimento "selinho Blog em bom", tens agora vinte e quatro horas para escolher um blog que gostasses de ser, explicando-nos porque é que aquele blog é mesmo um blog em bom e para desafiares mais cinco bloggers para este interessante desafio que pretende promover o convívio entre todos os bloggers, ou então um panda bebé morrerá e todos sabemos que os pandas são animais fofinhos que não merecem falecer só porque alguém não responde a um desafio"

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Voo

a sombra do voo 
da gaivota
passa pelo branco imaculado 
da parede
desliza suave
como uma carícia
como se fosse a tua mão
descendo-me
pelas costas.