Certo dia que jamais esqueceria, aproximou-se de Ercilla num
momento em que este, afastado de todos, se entregava ao estranho ofício de
embeber uma pena de ganso numa poção escura e com ela traçar estranhos sinais
sobre o que lhe pareceu ser a mais fina e branca das peles.
Estavam em Santiago del Nuevo Extremo e o soldado recobrava forças
após uma campanha contra os índios que os de Atacama conheciam como mapuches e
que os espanhóis chamavam araucanos. Divertido com a curiosidade do índio,
interrompeu o que fazia.
- Queres saber o que faço? Escrevo, Martín, escrevo.
O silêncio do índio encorajou-o a continuar.
- Escrever é desenhar e juntar letras, elas formam palavras
e com as palavras posso contar tudo o que vi. Estas letras formaram palavras e
elas contam como são as pessoas da Araucania. (…)
- Que mais pode escrever? – Insistiu com o olhar cravado
naqueles pequenos sinais escuros.
- O que eu quiser. Tudo.
- Também os sonhos?
-Também os sonhos, se estes forem castos e não incitarem ao
pecado – concluiu o soldado.
Por essa razão eram fortes os castelhanos, disse então para
consigo Martín Alonso Luna. Podiam conservar os sonhos a salvo dos fungos do
esquecimento e voltar a eles uma, cem, quantas vezes quisessem.
-Quero escrever, implorou. E um motivo insondável levou o
soldado-poeta a instruí-lo na arte doce e amarga das letras.
Luis Sepúlveda
“Desventura final do capitão Valdemar do Alentejo”, A
lâmpada de Aladino e outras histórias para vencer o esquecimento, Porto
Editora, 2008.
Escrever para não esquecer!
ResponderEliminarObrigada pela partilha
Escrever para não esquecer!
ResponderEliminarObrigada pela partilha!!!
obrigada, Luisa, que bom excerto :)
ResponderEliminarGosto bastante deste escritor, tenho mesmo um livro de contos seu, mas julgo que não seja este.
ResponderEliminarUm belo texto, que enaltece o poder e a função das palavras...
ResponderEliminarGostei imenso! Ainda não conhecia...
Bjs
Ana
Quando comecei a ler o post, tive de imediato a certeza que já tinha lido isto em qualquer lado :-)
ResponderEliminarAdoro Luis Sepúlveda, salvo novidade que que desconheça, creio possuir todos os seus livros.
ResponderEliminarObrigado pela partilha/recordação.
Excelente semana para a Luisa
É bom saber que gostaram deste bocadinho. :) Obrigada a TODOS:
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