segunda-feira, 26 de junho de 2017

Barrela

Saí à rua, já ao crepúsculo, e as cores do céu falaram comigo dizendo-me que estavam mortinhas para deslizarem até à minha folha de papel virtual, onde se acomodariam, se possível numa forma poética, para gozo dos olhos em breve leitura. Acenei-lhes que sim, que, entretanto, se podiam acomodar no meu bolso porque ainda me faltava tratar de alguns assuntos práticos, imprescindíveis e inadiáveis. E lá voltei para casa onde tinha desde ontem uma fronha ensaboada de azul e branco, daquele azul e branco que costuma comer manchas e amarelados diversos. Dediquei-me, pois, a esfregar a fronha. Um pouco mais de água, força nas mãos, esfrega de um lado, esfrega do outro, enxagua uma, enxagua duas, torce bem, torce melhor, estende, observa… Ainda não está como deve. A pensar nas cores do céu poente ainda em sossego na algibeira, decido-me por colocar a fronha de molho mais alguns minutos, desta vez com o auxílio da lixívia. É lixívia perfumada, mas mesmo assim é pouco poética. Enquanto a fronha branqueia, temo pelas cores do poente que, não tarda, se transfigurarão em noite escura. Ainda chego de fugida ao branco da folha e tento resgatar o encantador lusco-fusco das profundezas do meu bolso. A operação não corre bem e já os minutos de demolha da fronha se esgotam. Retorno ao alguidar e às águas correntes. Depois de muitas águas passadas, de espremida e torcida a fronha, volto à rua, rumo ao estendal. As cores do céu desvaneceram-se, a noite caiu e nem a lua, que hoje se oferece como vírgula para pontuar o texto, me resolve a situação. Conformo-me. Não há poesia que resista a uma barrela.

12 comentários:

  1. Palavras límpidas. Um gosto de post.

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  2. Mas olha, Luísa. Este texto poeticamente perfeito, nem o tempo que passaste a branquear a fronha a barrela o desvirtuou.
    Perfeito! :)

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  3. Creio não errar muito se disser: inspirada contradição

    O prosaico a vencer, poeticamente, o poético!...
    Muito bom

    Que a semana seja inspirada :)

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  4. Assim realmente não há poesia que resista :))

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  5. Não há mesmo. Aconteceu-me coisa semelhante: o dia todo a tentar escrever (mas sem nada no bolso que nem um passeio ao caixote do lixo dei) e, quando chegou a noite, tudo esvanecido, eu incluída. Apenas sobrou o tempo e disposição de vir aqui conversar e ouvir que é como quem diz escrever e ler um bocadinho. A minha fronha foi de dia inteiro. E hoje terei de lavar a outra.

    E por acaso prefiro estas suas histórias à que escreveu no delito de opinião. Mas isto sou eu que ligo um nadinha à poesia e gosto de solilóquios.
    Tenha um dia bom.

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  6. eu acho que essa barrela é toda ela uma poesia. até dá para sentir aqui o aroma do sabão azul e branco. tão bom :)

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  7. Há certos momentos que não há "barrela" que resolva a situação.
    Abraço.

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  8. A barrela tornou-se afinal poética!
    ~CC~

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  9. Gostei imenso de ler o texto! =)
    Beijinhos

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