sexta-feira, 22 de março de 2019

Linda de morrer


Ela era linda de morrer. Ele queria conquistá-la, mas temia só vir a ter um lindo enterro.

terça-feira, 19 de março de 2019

Talvez tudo fosse nada



(…)

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

(…)

Álvaro de Campos, Tabacaria

domingo, 17 de março de 2019

Passeio de domingo (441)


Não é o passeio do dia. Esta passagem pela Senhora da Rocha já tem duas semanas e vem para aqui  para preencher um  domingo ocupado com outras lides.








quinta-feira, 14 de março de 2019

Saudade do que não foi


Uma saudade profunda, esmagadora. Estou torturado por desejos sem nome de coisas que perdi para sempre, que jamais tive, jamais vi, que nunca cheguei a saber o que eram.

Eugène Ionesco

Restos de recordações (Primavera de 1939)
in O retrato do coronel, Editora Arcádia, 1963.

domingo, 10 de março de 2019

quinta-feira, 7 de março de 2019

Milú


Já tinha notado que algo estranho se passava com a tecla Esc do meu computador. Uma espécie de poeira muito leve rodeava-lhe a base e uns fios brilhantes espalhavam-se uma ou outra vez até à carreira das teclas eFes, ou, em sentido contrário, até à da tabulação.

Com um sopro, as pontas dos dedos ou um pano do pó eliminava estes sinais sem lhes atribuir especial importância até que ontem, ao carregar na tecla Esc para reanimar o monitor que, durante uma pausa mais prolongada da minha atividade, se tinha apagado em modo poupança de energia, pareceu-me ouvir um lamento. Olhei com mais atenção e percebi que, no retorno da tecla à sua posição de descanso, escapava-se para debaixo dela uma pequena aranha.

Resolvi chamá-la. Pssssst, sai daí. Não temas, sai daí. Ainda a medo, foi colocando pata ante pata sobre o teclado parando estre o Esc e o F1. Era Milú, a aranha sem-abrigo.

Contou-me que nos finais do ano passado, durante sete dias e sete noites, ventos estranhos e quentes sopraram sobre o navio onde estava passando as férias natalícias. Sob o efeito daqueles ventos misteriosos toda a tripulação caiu num sono profundo. Nem as trovoadas que se seguiram ao curioso evento foram capazes acordar aquela gente que, seguramente até hoje se mantém inanimada.

Antes da bizarra ocorrência, testemunhou ainda o dramático sequestro da sua capitã, atingida no peito por uma seta de amor e levada para parte incerta.

Naquelas tristes circunstâncias, Milú resolveu ir ao encontro da sua tutora Flor de quem também já tinha saudades. Meteu-se à estrada, escolhendo as bermas com mais vegetação para se abrigar. Seguiu por atalhos para mais depressa chegar à casa das palavras. Lá, estranhou o silêncio e a porta aberta. Entrou, percorreu os recantos onde tinha sido feliz, chamou, mas ninguém atendeu. A casa parecia abandonada. Ainda por lá ficou umas semanas, mas o peso da solidão tornou-se-lhe insuportável. Fez-se de novo à estrada e agora percorre as ruas do blogobairro, procurando abrigo aqui e ali, na expectativa de um feliz acaso que a faça reencontrar as suas duas guardiãs. Por estes dias abriga-se à esquina de uma tecla.


quarta-feira, 6 de março de 2019

Antes o voo da ave



Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é a Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!


Alberto Caeiro

terça-feira, 5 de março de 2019

Cantoria


Seriam umas seis e meia da tarde quando o ouvi cantar. Era um som alegre e cristalino que se distinguia facilmente dos comuns piares dos pardais e de outros pequenos passeriformes que, ao lusco fusco, ensurdecem os ramos das árvores. As suas notas melodiosas elevavam-se no ar provindas da parte de trás da minha casa. Procurei vê-lo, mas o pássaro escondia-se com toda a certeza na verde ramagem da alfarrobeira. Recordou-me, pela beleza do canto, uma famosa ave canora de que há muito não se tem notícia pelas bandas do bairro bloguês. Num leve sobressalto, imaginei que talvez se tivesse abalado para estas terras do sul e como numa brincadeira de Carnaval me estivesse agora a desafiar os ouvidos. Mas este não era um pássaro de beiral ou teria escolhido outro poiso, com tanto telheiro disponível que por aqui tenho. O outro, além disso, era madrugador e atuava sempre à primeira claridade das manhãs. Não, este era sem dúvida outro pássaro, num outro tempo, num outro tom.

domingo, 3 de março de 2019

Passeio de domingo (439)


Um cheirinho do percurso dos sete vales suspensos, que se pode fazer pela arriba costeira de Lagoa. Aqui, apenas na parte que corresponde à praia da Marinha.