quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Aurora




A poesia não é voz – é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro

Adolfo Casais Monteiro


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Astros

Astros - O movimento de certos astros não influencia apenas as marés. Também a frase.
A frase e o mar, afectados pela lua.

Gonçalo M. Tavares, Breves notas sobre Literatura-Bloom - dicionário literário - uma das muitas maneiras (definitivas) de fazer literatura, Relógio de Água, 2018.


Chapéus, curgetes e outros temas


Curgetes
Então, mas e as curgetes… As curgetes. Tens que lá ir apanhar. Vai apanhá-las se não elas ficam muito grandes. E, olha, há peras no frigorífico.

Chapéu
Então mas este chapéu é igual ao meu… Será que é o meu?
Olha que aquela senhora é que o pôs aí! Pergunta à senhora.
Estava na água, responde a senhora.
Sempre é o meu, então.


Carne
Aquilo era muita carne. Muito bem servido. Comemos até demais.

Onda
Vamos à iágua? Cuidado com a onda! Eeeeeeeeeh!

Bolas
Olha a bola de Berlim. Bola de Berlim. Bóoooliiiinha!




terça-feira, 18 de setembro de 2018

Ficou feito num oito


Caixa


N u m a    c a i x a
i                         s
m                       a
a                       m
g                        e
i                         o
n                        P
à                         
r                         s
i                         u
a                        e
G u a r d o   o s   t

domingo, 16 de setembro de 2018

Passeio de domingo (420)


Pelas arribas da minha costa algavia, aqui onde nem é bem sotavento, nem é bem barlavento, aqui no centro do meu mundo.









sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Ficar bem na fotografia


Os dias têm começado com aquela neblina que dilui o horizonte e aos poucos se vai evaporando sob o efeito do sol que, embora mais contido, não deixa de se mostrar implacável. O mar anda manso e morno, para meu contentamento. Meu e dos veraneantes que se deixaram ficar para o fim aproveitando o espaço livre no areal e a baixa notória dos decibéis que andam no ar. Casais de meia-idade ou a caminho da terceira, como o casal verde que chegou à minha frente. Verdes os calções dele, verde o vestido dela, verde a mochila, serventia dos dois. Casais jovens também, com crianças abaixo dos cinco, como o dos rapazinhos loiros da mãe de selfie-stick colado à mão direita. Instalados a poucos metros de mim, só dei verdadeiramente por eles quando já se ocupavam à beira-mar. Os meninos saltitando, o pai olhando, a mãe fotografando-se. A mãe fotografando-se. A mãe fotografando-se. A mãe fotografando-se. 

De pé, de costas para o mar. De lado, ombro esquerdo ajeitado, anca esquerda ligeiramente elevada. De joelhos na água da rebentação, cabeça inclinada para trás, cabeça reclinada para o lado, cabelos sacudidos pela brisa. Deitada de barriga para baixo, joelhos fletidos, pezinhos no ar. De novo de pé. Braço em riste, alongado pelo pau que suporta o telefone na extremidade, cuidando de evitar alguns salpicos. Distraio-me dela mergulhando nas páginas do livro. Viradas uma vinte, torno a olhar o mar e lá está a mãe fotografando-se. A mãe fotografando-se. A mãe fotografando-se. Repete as posições. Perto de uma hora deve ter passado. De vez em quando, passa em revista as fotografias já tiradas, apaga algumas menos conseguidas, presumo eu, e volta à sessão. Em algum momento há de ficar bem na fotografia.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Rolamentos e outras peças


Há meses que a máquina de lavar roupa se queixava. A cada lavagem subia o tom dos gritos que dava. Rodava o tambor e tromtromtromtromtromtromtrom troava ela sem descanso. Os rolamentos, diziam-me. São os rolamentos.

Há semanas que eu tinha ligado para o senhor das máquinas. Que sim, que viria, mas me ligaria ou eu a ele de novo já que andava muito ocupado. Eu, agora em descanso de fim de verão, liguei de novo, que estava por casa, que facilitaria. Que sim, combinou o senhor das máquinas. Para hoje. E cumpriu. Pouco passava das nove, estava já em ação, desaparafusando, rodando, retirando peças. Eu satisfeita, apenas me atrasaria um pouco a manhã de praia. Uma hora passada, se faz favor, clama o senhor das máquinas. Atiro o livro para o lado, pequena corrida corredor adentro, quanto é que ele me vai cobrar? Afinal não, ainda não acabou. Com muita calma, explica o senhor das máquinas o mal da minha. Até era só um dos rolamentos que estava gasto, o outro, como vê, está novinho ainda. O problema é o retentor que está danificado. Rolamento até tinha para substituição mas o retentor tinha que ver, com eles, se havia disponível naquela medida. E parece que agora há mais medidas do que antigamente. Ia ver, ia ver com eles. De tarde viria concluir o trabalho ou, na falta do retentor, me telefonaria.

Ao final da manhã, a praia ainda estava no mesmo sítio, menos mal para quem quer aproveitar o bom tempo que faz. Lá fui. Agora, já a tarde vai a meio e no mesmo sítio está também a minha máquina de lavar. Totalmente desmontada, tambor de fora, parafusos em espera, um puzzle em construção e um enigma por resolver. Voltará hoje o senhor das máquinas?


terça-feira, 11 de setembro de 2018

Ao sol


Ao contrário do que costumo fazer, coloquei o guarda-sol o mais atrás que que consegui. Escolho sempre a linha da frente, ali onde a areia seca faz fronteira com a areia molhada, assegurando-me de que ninguém me tira a vista sobre o horizonte e a rebentação das ondas, coisa que nem sempre se vem a comprovar já que, depois de mim, outros chegam com a mesma ideia e nem se importam do maior esforço que precisam ter para enterrar o pau da sombrinha. Hoje, escolhi ficar de observadora de todos quantos chegassem depois. Atrás de mim só a barraca de apoio dos nadadores-salvadores, erguida sobre um pequeno morro, a oeste do restaurante da praia. Para dizer a verdade, a opção do lugar deveu-se sobretudo à vontade de querer ficar num recanto que me pareceu mais abrigado do vento leve que soprava naquele momento. Tenho sempre receio de que uma rajada mais forte me vire a sombra e me obrigue a correr atrás de um potencial desastre. Verifiquei depois que foi receio infundado. O vento não soprou mais, não precisei sequer de segurar no chapéu de sol, as mãos totalmente livres para virar as páginas da história que foi comigo para a praia. Acabei por não observar, como pensei que faria, os veraneantes que depois de mim foram chegando. Reparei, no entanto, no homem que tinha uma cadeira sem sombra, três a quatro metros à minha direita. Do excessivo sol que já tinha apanhado, ostentava um forte bronzeado cor de vinho. Interpretei-o nórdico, pelo tom do cabelo e pelo branco translúcido que imaginei para a pele escondida sob os calções de banho.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O jantar


Na mesa do lado, dois casais de meia idade recebem as suas quatro canecas de cerveja gelada e a travessa de camarões. A mulher de cabelo escuro, ajeita o telemóvel para fotografar o repasto, mas desajeita a mão e cai-lhe o aparelho sobre os dois camarões que já lhe enfeitavam o prato. Pobre bicho. Nada que a demova. Retoma o processo e conclui a publicação na rede social de cabeçalho azul. Agora sim, já pode comer descansada. Por pouco tempo, porém. É que chega à mesa a feijoada de lingueirão e como poderia ela deixar de registar o momento? Ficará o telefone marcado com dedadas e cheirando a marisco, mas que importa isso face à imprescindível publicação do prato principal do repasto? Entre uma e outra garfada, aproveita também para mostrar à mulher de cabelo claro as fotografias do neto que se alinham na galeria do telemóvel. É o equivalente ao álbum das fotografias de papel que noutro tempo se mostraria aos amigos, com o jantar já terminado, eventualmente bebericando um café na sala de estar. O álbum é agora digital, vai de férias com a família e acompanha-a à mesa do restaurante. Duas mesas atrás, e com duas crianças pequenas, janta outra família. Aí não se pousam telemóveis nem tablets sobre a mesa. A menina da chucha entretém-se com um pedacinho de pão. De vez em quanto aborrece-se e grita aumentando o nível de ruído já de si elevado do restaurante. Olho para ela e sorrio. O melhor do mundo, confirma-se, são as crianças.

Fazer figura de urso


domingo, 9 de setembro de 2018

Passeio de domingo (419)


O ar límpido de setembro,  o cheiro do pinhal e das estevas, as pegas palrando, eu caminhando.









O caminho


Peut-on aller par lá?
Oui.
As veredas são sinuosas e do alto da falésia, entre pinheiros e estevas, os dois caminhantes estão indecisos. O meu sim conforta-os e seguem mais confiantes. Um pouco atrás, ainda em esforço, na subida, aproximam-se as companheiras. Os quatro acreditam agora que este é, afinal, um caminho com saída.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Meteu a cabeça na areia


A língua

(..) provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. (...)

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Setembro


Estão quatro pombas a descansar no cabo da eletricidade. É um cabo esticado entre dois candeeiros públicos, um em frente de casa, lado sul, outro nas traseiras, noroeste. Cada um na sua rua. São as duas ruas perpendiculares que delimitam o meu espaço e que observo enquanto me debruço sobre o muro de vedação. O vento agita as árvores e faz balancear o cabo. Estremecem levemente as penas das pombas que se aguentam em síncrono equilíbrio. Reparo no ramo quebrado de uma alfarrobeira, nos estilhaços de um prato que alguém atirou para a berma da estrada, nos destroços que ficaram junto ao contentor do lixo. O céu conseguiu ficar azul, contrariando a intenção do dia quando amanheceu, mas nem assim dissipou a melancolia que se agarrou aos troncos das árvores, que atapetou o asfalto, que se entranhou nos telhados. Volto a olhar para as pombas. Voaram e nem dei por isso. Recolho-me ao telheiro com o meu livro de capa amarela, a música de fundo a cargo dos espanta-espíritos.

domingo, 2 de setembro de 2018

Passeio de domingo (418)


Sem me poder ausentar de casa, por razões familiares, passei rapidamente a objetiva por detalhes e bicharada da horta que se encontra aqui mesmo à vista.