quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Juntos

Hoje caminhámos juntos.

Não sei se deste conta de como andámos. Eu a par de ti. Tu a par de mim. Pergunto-me se terás percebido, como eu percebi, que o ar circulava sereno pelos interstícios das horas. 
Confesso-te: gosto tanto de nos ver assim.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Acidente de percurso

Diz Vargas Llosa, em entrevista publicada na última edição da revista do Expresso, que todos os seres humanos deveriam planear a vida como se fossem viver eternamente. Afirma que, para vivermos em paz, devemos aproveitar a vida até ao final e organizá-la como se vivêssemos indefinidamente, para que a morte seja como um acidente.

Eu, que não sou ninguém, atrevo-me a dar-lhe razão. Agrada-me o pensamento de uma vida interminável. Pensar na morte como um acidente de percurso tem um lado absolutamente redentor que me faz sentir salva.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Caminhada

Caminho no mesmo caminho de sempre. Caminho na mesma hora de sempre. Ou quase. O corpo corta o mesmo vento de sempre. O chão, sob os meus passos, ressoa o mesmo som de sempre. Os cães latem e ladram nos mesmos quintais de sempre. Os grilos ensaiam a mesma cantilena de sempre. Como sempre um ou outro comboio passa. Como sempre ouço o aviso sonoro da cancela que fecha e que abre. Vejo as mesmas sombras de sempre nas folhas trémulas das árvores. À passagem pelas amendoeiras que carregam de flor na devida época, lembro-me sempre do bêbado caído junto ao muro que vi numa caminhada com as de sempre. Os cheiros da noite são os de sempre. Como sempre, o corpo aquece no movimento. Como sempre rola-me uma ou outra gota de suor pelo peito. Como sempre.

E vai crescendo uma melancolia que me envolve e me pesa. Acelero como quem precisa de se distanciar, de se soltar daquilo que nunca muda. Então, nesse preciso momento vejo-a. Em equilíbrio sobre o fio elétrico, iluminada pelo candeeiro público, vê-me também.  E observa-me do mesmo modo que a observo. Tal como eu viro a cabeça para trás para a manter mais uns segundos no meu campo de visão, ela vira a cabeça para o meu lado e acompanha-me no movimento. De olhos nos olhos, a coruja lança-me um feitiço e faço o resto do caminho, leve, sabendo que nunca nada é como sempre.

domingo, 25 de setembro de 2016

Passeio de domingo (324)


A volta deste domingo foi longa, andou pela serra e chegou a Alcoutim onde também há praia. Mas fluvial.









terça-feira, 20 de setembro de 2016

Um caso

Pela manhã, saí de casa com sol. O céu mostrava-se sem nuvens e assim esteve durante aproximadamente metade do meu percurso. Entretanto, comecei a avistar, ao longe, uma leve bruma que parecia querer enrolar-se nos raios solares. O horizonte cintilava num jogo de cores e texturas que despertou em mim uma forte curiosidade. À medida que eu avançava, adensava-se o nevoeiro até que o trânsito penetrou naquele corredor de humidade e deixei de poder observar o fenómeno brilhante que tanto me estava a cativar. Logo percebi que aquilo do nevoeiro era de propósito, só para não me deixar bisbilhotar o caso. Mas não me levam ao engano. Tenho a certeza que ali se deu um caso amoroso e que o que vi era um encontro secreto entre o final do verão e a primeira luz do outono.

domingo, 18 de setembro de 2016

Passeio de domingo (323)


No último domingo deste verão, que parece não ter vontade de se ir embora, o passeio foi mais uma vez na praia.










sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Não sei se já te disse daquilo das poeiras. Foi no outro dia, ao fim da tarde, quando regressava a casa. O ar estava leve, varrido pelo vento de setembro. Era aquele vento macio – sabes? – que te lambe a pele como um gato lambe os pelos, que faz estremecer docemente as folhas das árvores e que atenua o calor dos dias, ainda, de verão. Por certo transportadas por esse vento, pairavam, aqui e ali, umas finas partículas que não consegui identificar de imediato.

Via-as suspensas nas roupas das pessoas que passavam e que o tal vento fazia dançar junto aos seus corpos. Via-as também muito concentradas no branco fofo de uma nuvem que se arrastava num rasgo ainda azul do céu. Uma ou outra aparentava brincar sob as folhas caídas de um plátano, denotando uma certa saudade do outono. Via-as ainda, ao lusco-fusco, dançando, em jeito de equilibristas, sobre um traço de avião que, não sei como, atravessava a lua cheia já visível a leste e que começou então a perseguir-me pelo retrovisor do carro.

O mais estranho era eu também sentir as tais partículas, poeiras do mais fino toque, no tom do vocalista dos Dire Straits, que cantava  so far away from me no rádio do carro. E eu, com a lua a nascer atrás de mim e o sol já a pôr-se na minha frente, vi, subitamente e com toda a clareza, que aquelas partículas só poderiam ter-se escapado de um poema que estivesses, naquela tarde, a escrever, junto a uma janela aberta, com uma ínfima nesga de vista sobre o meu pequeno mundo. E só pode ter sido por essa nesga que, inadvertidamente, chegou até mim aquele fino pó de poema.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A leitora

A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,
branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira,
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.


António Ramos Rosa
(Volante Verde, 1986)



domingo, 11 de setembro de 2016

Passeio de domingo (322)



Em mais um domingo preguiçoso, trago um passeio da última semana de férias de verão. De novo entre mar e ria, desta vez a barlavento,  Alvor.









sábado, 10 de setembro de 2016

Bebida

Quando me falas assim e te bebo as palavras,
és como um vinho doce que me percorre o corpo,
de cima para baixo e
inversamente até ficar meio tonta.
Perco o controlo do sorriso que já não me sai do rosto.
Gota a gota, encontro-te na mais ínfima vírgula
 no mais pequeno traço.

Sorvo-te a cada ponto.  

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Móbil



Do tempo que passa (2)

O rapaz não me reconheceu. É certo que apareci descontextualizada. Em trajes turísticos, com óculos de sol e chapéu de ráfia, em nada igualava a aparência mais formal que evidencio no meu ambiente de trabalho. É certo também que passaram vários anos desde que fui eu que o atendi e dei resposta ao que procurava. Agora deu-se o inverso. Ele sentado do lado de lá do balcão. Se era para visitar o monumento? Que sim. São dois euros e pergunta se quer que coloque o filme a passar ali na pequena sala do centro de interpretação. Depois é só passar por ali e subir a ladeira. Obrigada. Breves segundos de hesitação enquanto decidia se me identificava ou não. Foi não. Não valia a pena. Cada vez mais me parece que vale menos a pena.

Do tempo que passa (1)

A rapariga foi solícita. Não, disse-me ela. Para corretor de olheiras não era aquele produto. Era só um minuto que já vinha aconselhar-me. E veio logo. Pegou na amostra certa e começou a aplicar-me uma porção com os dedos ágeis e conhecedores. Veja a diferença, disse orientando-me para a zona dos espelhos.  Terríveis aqueles espelhos. Juntam-se a umas luzes potentes e mostram todos os detalhes, impiedosamente. E vi a diferença. As olheiras estavam atenuadas. E vi também outras diferenças. As diferenças do tempo, expostas ali na pele. Na pele madura. Foi assim que a rapariga disse.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

domingo, 4 de setembro de 2016

Passeio de domingo (321)


Cá está mais um passeio que o domingo pede emprestado a um dia da semana. Este deu-se entre o mar e a ria, na praia da Fábrica, junto a Cacela Velha.










quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Abrir os cordões à bolsa


O mar daqui

A jovem, saída da água, corpo escorrendo de frescura, dizia para a mãe estendida sob o chapéu de sol, está tão boa… Está mesmo quente, e clara, e tem muitos peixes. E a mãe, então, pega no telefone e diz para lá da linha, vem, olha que está mesmo quente e transparente e veem-se os peixes. E eu, sentada ao lado, debaixo do meu sombreiro, vos digo sim, está mesmo boa. Está límpida, e quente, e fresca, e calma, e verde, e azul, e levemente ondulante, e especial, muito especial, como só no mar daqui.