terça-feira, 26 de novembro de 2019

Fiquei em branco


Intermitências


Eu, que ultimamente pouco devo à assiduidade no que toca a atualizar este blog e que de regularidade também não me posso propriamente gabar, fico sem grande legitimidade para aqui vir arrazoar sobre as intermitências de blogs que tanto gosto de ler. Mas o facto é que elas me inquietam. Há os que avisam e me deixam numa espera sossegada. Se não avisam das ausências, quando dou por elas fico um pouco preocupada mas tendo a achar que é coisa passageira e que, sem que eu espere, um destes dias me surpreendem. E assim acontece. E quando acontece de me saltar de novo à vista uma sua atualização, é sempre uma boa surpresa, uma felicidade, mesmo que breve em certos casos. Outros há que, de repente, fecham a janela (isto dos blogs são mais janelas do que portas) e afixam uma tabuleta avisando que o acesso é reservado. Aí a inquietação é maior. Fico sempre sem saber se é uma forma de suspender o blog ou se é mesmo uma restrição de leitores. Respeito, compreendo, aceito, mas entristeço-me por não mais os poder ler.

domingo, 24 de novembro de 2019

Passeio de domingo (470)


Digamos que fui passarinhar...
[ontem, nos Salgados]









Agora


Agora que desenformei o bolo e que espero que arrefeça o suficiente para o poder provar, agora que já recolhi a roupa que estava a secar lá fora; agora que já fui colher um ramo de hortelã para aromatizar a canja que há de confortar-me ao jantar; agora que não se anuncia qualquer tarefa inadiável, agora que o dia está a declinar e que até já fechei as persianas das janelas de casa, abro a janela das histórias que se contam no blogobairro, exponho um passeio de domingo e vou inteirar-me das novas que por aí se dão a ler.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Há metafísica bastante em não pensar em nada


(...)


Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?


(...)

Alberto Caeiro

domingo, 17 de novembro de 2019

Passeio de domingo (469)


Caminhando pelo trilho de S. Lourenço, na Quinta do Lago, a observar aves e gente.









A santa


No corredor do leite, das natas e dos ovos, entra o moço, disparado da via perpendicular, soltando um impropério daqueles que eu só poderia aqui reproduzir cheio de símbolos e exclamações. Enquanto escolhe e retira a embalagem de leite, eu aguardo para me dirigir à mesma prateleira e reparo que a santa que ele traz tatuada no gémeo da perna olha para mim enrubescida.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Amnésia


Todos os dias penso que deveria comer menos. Esse pensamento ocorre normalmente depois de já ter comido. Antes de encher o prato, costumo sofrer de amnésia seletiva.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Isto não interessa nada


Era para contar do estado do céu pelas dezassete horas e trinta e seis minutos, quando conduzia na rotunda elevada da variante a Faro da nacional cento e vinte cinco, das cores que tinha, das nuvens a norte, da bruma que envolvia a lua cheia que já se destacava a leste, das luzes da cidade e dos faróis dos carros que já se acendiam. Mas isso não interessa nada.

Era para contar da minha pressa em chegar a casa, em trocar a roupa de trabalho pela do ginásio, em calçar as sapatilhas, em comer uma mão-cheia de frutos secos, em sair rumo à aula de dança livre, assim em português, tradução livre, só para não dizê-lo em inglês como vem no programa. Mas isso não interessa nada.

Era para contar dos ritmos loucos, das músicas que, como me dizia uma das participantes na aula, nem gosto muito – algumas nada – de ouvir habitualmente e que ali seguimos alegres, em saltitantes coreografias, rebolando o ventre, agitando as ancas, elevando os braços, sapateando convictas. Mas isso não interessa nada.

Era para contar do regresso a casa, já noite erguida – erguida para contrariar aquela cena da noite que cai – com a lua brilhando bem alta e eu escorrendo em suor, de faces vermelhas que nem pimentos, ansiosa pela água morna do chuveiro que dali a cinco minutos me vai acolher e serenar. Mas isso não interessa nada.

Fico assim, então, sem nada para contar.



terça-feira, 5 de novembro de 2019

às vezes basta


às vezes basta
uma palavra
uma flor ou apenas uma pétala
um sorriso
o voo rasante das gaivotas
não sentir e não me importar
uma colher de arroz-doce, mas com a parte da canela
o cheiro a mar
uma pinta na folha
o frio da pedra e o quente de uma respiração
o fumegar do café
importar-me com o teu sentir
o lápis de cor amarela, para pintar o sol
aqueles teus fios de música que fazem estremecer
uma impressão, mesmo que vaga, de felicidade
o ondulado negro
a lembrança sempre presente de ti

para a vida prosseguir


Isabel Pires
(a permanência da memória dos dias de sal, 2019)

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Viagem


Tinha o lugar cinco, junto à janela, mas tive de me sentar no seis - até ver, pensei, pois poderia entretanto chegar o seu ocupante – já que o banco um, na frente, estava todo reclinado, anunciando a intenção do passageiro que até já se aconchegava com uma almofada de pescoço. Mal arrancou o autocarro, virou-se para mim o passageiro do banco dois para me comunicar que ia baixar o seu encosto. A sinhóra, se quisé, podji mudar-se qui o carro vai vazio. Nem queria acreditar no que ouvia e nem queria acreditar na minha incapacidade em lhe responder de imediato que bem podia ele mudar-se, pois se o carro ia vazio para mim, não ia menos vazio para ele. Ainda resmunguei qualquer coisa entre dentes e sentei-me uma fila atrás, no banco onze. Na paragem seguinte, entraram dois novos passageiros, ambos desorientados quanto aos lugares que lhes cabiam. Já dominando a geografia dos assentos da viatura, orientei a mulher para o treze indicado no respetivo bilhete e ao rapaz de barba e bom ar, que verifiquei ser o legítimo ocupante do seis, expliquei que estando o seu lugar a servir de apoio ao banco da frente, pois que se sentasse onde bem entendesse. Ficou logo ali, ao meu lado, no dez, apenas com o corredor a manter entre nós alguma distância pessoal. Entretanto, no banco um ressonava-se a bom ressonar. O rapaz de barba e bom ar manifestou simpatia, ofereceu-me dos seus m&ms, que polidamente declinei, e encetou amena cavaqueira sobre de onde vinha, para onde ia, de onde era, o que procurava, e o que achava eu. E eu, já achava que me aguardavam três horas de viagem a ter que dar atenção ininterrupta ao moço. Até que, aleluia, arrumou o snack, afastou-se da coxia para o lugar da janela e pegou no telemóvel. Foi então que começou a ouvir-se, para além da estação de rádio sintonizada pelo motorista do autocarro e para além dos roncos sincopados do passageiro do banco um, as falas transatlânticas que contavam a história de uma tal Josiane e de uma tal Fabiana, novela de crimes, polícia, prisão e o escanbau.

domingo, 3 de novembro de 2019