segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Viagem


Tinha o lugar cinco, junto à janela, mas tive de me sentar no seis - até ver, pensei, pois poderia entretanto chegar o seu ocupante – já que o banco um, na frente, estava todo reclinado, anunciando a intenção do passageiro que até já se aconchegava com uma almofada de pescoço. Mal arrancou o autocarro, virou-se para mim o passageiro do banco dois para me comunicar que ia baixar o seu encosto. A sinhóra, se quisé, podji mudar-se qui o carro vai vazio. Nem queria acreditar no que ouvia e nem queria acreditar na minha incapacidade em lhe responder de imediato que bem podia ele mudar-se, pois se o carro ia vazio para mim, não ia menos vazio para ele. Ainda resmunguei qualquer coisa entre dentes e sentei-me uma fila atrás, no banco onze. Na paragem seguinte, entraram dois novos passageiros, ambos desorientados quanto aos lugares que lhes cabiam. Já dominando a geografia dos assentos da viatura, orientei a mulher para o treze indicado no respetivo bilhete e ao rapaz de barba e bom ar, que verifiquei ser o legítimo ocupante do seis, expliquei que estando o seu lugar a servir de apoio ao banco da frente, pois que se sentasse onde bem entendesse. Ficou logo ali, ao meu lado, no dez, apenas com o corredor a manter entre nós alguma distância pessoal. Entretanto, no banco um ressonava-se a bom ressonar. O rapaz de barba e bom ar manifestou simpatia, ofereceu-me dos seus m&ms, que polidamente declinei, e encetou amena cavaqueira sobre de onde vinha, para onde ia, de onde era, o que procurava, e o que achava eu. E eu, já achava que me aguardavam três horas de viagem a ter que dar atenção ininterrupta ao moço. Até que, aleluia, arrumou o snack, afastou-se da coxia para o lugar da janela e pegou no telemóvel. Foi então que começou a ouvir-se, para além da estação de rádio sintonizada pelo motorista do autocarro e para além dos roncos sincopados do passageiro do banco um, as falas transatlânticas que contavam a história de uma tal Josiane e de uma tal Fabiana, novela de crimes, polícia, prisão e o escanbau.

30 comentários:

  1. nã entendo as pessoas que saltam de lugares ou que nos obrigam a mudar... elas nã entendem que o universo nos encaminhou naquele sentido?

    ResponderEliminar
  2. Já não há respeito pelas leis cósmicas, Mau-tempo. :)

    ResponderEliminar
  3. Este é o mais longo texto que jamais vi e li neste blog. :)))))

    Tampões para ouvidos e/ou auriculares são aconselháveis para viagens longas...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Um dos mais longos, talvez, Catarina, mas não o único. Embora eu seja mesmo de poucas palavras. :)
      Para a próxima, de tampões para os ouvidos e auriculares terei que me prevenir.

      Eliminar
  4. Gostei do comentário da Catarina :)))
    Boa semana

    ResponderEliminar
  5. Essa de inclinar o assento, já me aconteceu isso numa viagem de avião, mas eu protestei. O barulho é menos incomodo do que estar entalada entre dois assentos.

    Boa semana‼

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sempre há quem recline ligeiramente o assento, mas totalmente como aqueles dois, nunca tinha assistido.

      Eliminar
  6. Que viagem, Luísa. Uma das razões por que prefiro o comboio é os assentos não serem móveis:). Que no seu caso houve um bocadinho de azar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desta vez, convinha-me o autocarro. Questão de horários e de logística.

      Eliminar
  7. A total falta de respeito pelos outros.
    Abraço

    ResponderEliminar
  8. Tenho essa ambiguidade face aos transportes públicos, se apanho boas histórias e boas personagens, adoro, mas quantas vezes é duro:)
    ~CC~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. CC, é verdade que dos transportes públicos sempre se arranja uma história para contar, com bons ou maus personagens... :)

      Eliminar
  9. Não acho piada encontrar o meu lugar ocupada e na viagem aos Açores obriguri a sair do meu lugar... apenas pelo abuso da confiança!!! Bj

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois eu também não achei graça a estes dois "senhores gajos", Gracinha. E fiquei irritada comigo própria por ter reagido mansamente.

      Eliminar
  10. Não gosto desses abusos e quando viajo de autocarro só quero usufruir do repouso de não ir a conduzir!

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esta viagem foi um tanto sui generis, Rosa dos Ventos.

      Eliminar
  11. nestas viagens, nunca sabemos muito bem o que nos espera. há anos, numa viagem de autocarro, o meu nariz acusou subitamente um cheiro muito ativo, extremamente duvidoso. ainda pensei tratar-se de um passageiro a merendar pão com gorgonzola, ou algo assim. mas afinal o fungo era outro, como a assistente de bordo, também ela alarmada, veio a constatar pouco depois, ao deparar-se com um homem a dormir… descalço!
    há realmente pessoas que não sabem estar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ui... Nem sei se não é preferível os roncos ou a novela... :)

      Eliminar
  12. Luísa, episódios que surgem para nos dar conta da sorte que temos, quando encontramos pessoas que sabem por-se no seu lugar, literalmente e em sentido figurado.

    ResponderEliminar
  13. Por certo, mia. Que essas estejam sempre em maioria. :)

    ResponderEliminar
  14. Já fiz viagens longas em 'Expressos' e de comboio, mas tenho tido sorte com os companheiros de viagem. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Acho que foi a primeira vez que sofri este tipo de incómodo, Janita.

      Eliminar
  15. Luísa, já me aconteceu isso em comboios e autocarros, mas não cedi a ocupar um lugar diferente do da reserva. Ajo assim porque a cedência normalmente desencadeia o avolumar do problema e consequente confusão, salvo quando é troca directa e o problema fica logo sanado.
    Por outro lado, quando compro bilhetes com reserva de lugar, escolho o lugar dentro do que está livre. Logo, faço questão que a minha escolha seja mesmo uma escolha feita por mim e não pelos outros.
    Abdico sem qualquer problema em situações de força maior.

    Há relativamente pouco tempo, viajei durante uns meses com o título flexipasse, um passe especial para intercidades que não inclui reserva de lugar. Aí sabia que só podia ocupar os lugares disponíveis e tinha de me levantar se chegasse uma reserva.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E tens razão, Isabel, em não ceder. Por não o ter feito é que fiquei irritada comigo própria.

      Eliminar
  16. É muito típico tudo isso que descreve, mas ainda pior que tudo, para mim, é a mania inexplicável que as pessoas têm de descalçar-se nesse tipo de viagens (como se estivessem em casa...).

    ResponderEliminar
  17. É verdadeiramente uma falta de respeito para com os restantes passageiros, Isabel.

    ResponderEliminar
  18. Em questões de acidente e seguros, se não estivermos nos lugares designados, é uma carga de trabalhos.

    ResponderEliminar