quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Um rosto


Sabes quem esteve cá hoje? Deves lembrar-te dela, dizem-me, contando da visita inesperada e de como gostaram do reencontro depois de tantos anos. Revelam que a Filomena já tinha estabelecido contacto há algum tempo através do Facebook. Hoje fez-lhes uma surpresa e à primeira vista nem a reconheceram. E eu lembro-me, sim. Lembro-me do seu nome e lembro-me dos seus cabelos longos e ondulados. Lembro-me de uma adolescente que padecia de uma doença grave, das conversas murmuradas das mulheres adultas, dos seus lamentos. A esperança flutuava em corredores de hospital, um frágil suporte a que se agarravam. Da sua recuperação não tenho memória. Terá sido já depois de meu regresso a Portugal. Lembro-me da Filomena, sim, e de um macacão cor de pêssego, de pernas largas, feito de um tecido jersey muito leve, que ela usava e que estava, então, muito na moda. Sei que era bonita, mas não consigo recordar-me do seu rosto. Tento, mas por mais que me esforce não consigo vê-lo, nem sequer imaginá-lo e questiono-me como é que um rosto que não lembro pode assombrar-me assim o pensamento.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A vida secreta dos objetos - a vaca manteigueira


Eu devia ter desconfiado. Que ingénua fui. É bem sabido que estas terras do sul estão cheias de feitiços. O que por cá não falta são histórias de mouras encantadas e também são muitas as histórias de bruxas e de lobisomens. Como é que eu fui na cantiga da Luisa. Muito paz, muita serenidade: olha, vem mas é descansar um pouco, foge dessa guerra blogueira, passas cá uns dias, aproveitas o sol e até te divertes no Carnaval. Pois. E eu, burra, enfim, vaca desmiolada, caí na esparrela. Então não era de ter pensado logo que isto de ir de férias para um blogue com nome de esquina só me podia levar uma encruzilhada esquisita. E vejam só o que me aconteceu… Com a desculpa dos disfarces carnavalescos agora vejo-me transformada em manteigueira de cerâmica e não consigo libertar-me do trajo. Enquanto me mascarava, bem a ouvi murmurar umas palavras estranhas e agitar uns lenços de seda ao mesmo tempo que rodopiava em meu redor. No momento não entendi, apenas achei que ela, disfarçada de odalisca, ensaiava uma dança para o baile de máscaras. Mas ó, desgraça a minha, era o feitiço. Depois, riu-se muito, desembrulhou um pacote de manteiga e colocou-o dentro de mim. Agora és só minha, disse, ficas a pertencer à minha coleção. Não haverá quem quebre este feitiço, pois quem o podia fazer deixou há muito tempo as lides bloguísticas, continuou. E detalhando explicou: só a conjugação de uma lua cheia com o regresso de uma Pirata e da senhora Sorriso, poderia resgatar-te a esse corpo de barro. 


E agora, ai de mim…. Socorro! Muááááá, muáááááááa! 


domingo, 23 de fevereiro de 2020

Passeio de domingo (479)


Em busca das primeira orquídeas silvestres e outras flores pequeninas que nascem aqui perto de casa.









sábado, 22 de fevereiro de 2020

Post epistolar


Minhas queridas,
Flor,
Susana,
Teresa,

Espero que estas minhas breves palavras vos encontrem mais calmas. Desculpem-me por não vos ter avisado antecipadamente, mas andava muito necessitada de um pausa e decidi aceitar o convite da Luisa. Vim passar o Carnaval com ela e daqui vos mando uma foto da pastagem em que me encontro. Logo mais vamos escolher os nossos disfarces para os desfiles e os bailes da época. O tempo está maravilhoso, uma verdadeira primavera antecipada.

Depois conto-vos tudo.

Até breve,
Mumu.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Feia

Bem posso perder-me nos álbuns de velhas fotografias cá de casa e nas caixas onde muitas se acomodam à espera de organização; bem posso procurar as fotografias onde estou em criança, adolescente e jovem adulta; bem posso fotografar-me agora, uma e outra vez, e comparar-me com o que fui; bem posso aproximar-me do espelho ou dele me afastar procurando o meu melhor ângulo; bem posso experimentar um novo creme de rosto; bem posso tentar a maquilhagem; bem posso olhar para outras pessoas para ver se não estão pior que eu… A verdade é que não adianta. O nariz abatatado ocupa cada vez mais espaço, as sobrancelhas estão cada vez mais ralas; os dentes mais amarelos, indiferentes ao dentífrico branqueador; as bochechas cada vez mais descaídas, os olhos cada vez mais fundos, os vincos da pele cada vez mais vincados. É um facto. Estou cada vez mais feia.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Acácio

Senta-se sobre o pequeno pontão, costas curvadas, a ver passar o tempo. Manhã cedo, ou quase noite, lá está, indiferente ao frio se é inverno, aproveitando a fresca se é verão. O trabalho é escasso e a vontade mais ainda. Por vezes, está do outro lado da estrada, de pé, como quem inspeciona a terra e as árvores que se estendem até ao horizonte possível. Outras vezes ainda, é vê-lo caminhar pela rua, indo ou vindo da venda, a magreza dançando nas calças largas que talvez alguém lhe tenha dado. Leva na mão uma garrafa de vinho e no saco de plástico um pão. Sempre uma garrafa de vinho e um pão, que há de consumir diariamente, inescapável monodieta.