domingo, 19 de julho de 2020

Passeio de domingo (497)


Queiram, por favor, desculpar-me. É que hoje não há passeio. São só alpendres e outras coisas sem jeito nenhum.









quarta-feira, 15 de julho de 2020

Filtro


Caminhavam lado a lado. Seriam talvez mãe e filha ou tia e sobrinha. Teriam qualquer outra ligação familiar ou de amizade. Não sei. Passei por elas à devida e segura distância quando ambas pararam e se despediram com um beijo cuidadosamente filtrado, máscara contra máscara.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Um olho invisível


Não posso dizer que não ganhei para o susto. Ganhar até ganhei evitando o erro que estava à curta distância de um clique. Eu a carregar no botão de envio e o gmail a alertar-me, com uma daquelas janelas saltitonas, sobre a falta do anexo que eu pretendia remeter com a mensagem. Cruzes, que até me afastei ligeiramente do computador num movimento involuntário guiado pela inquietante surpresa. Como é que o gmail sabia que aquela mensagem carecia de anexo? Esta não passa de pergunta retórica já que é fácil perceber como acontece a façanha, mas que me incomodou sentir sobre mim o olhar invisível e obsceno da máquina, lá isso incomodou.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Calor


Eram precisamente vinte e uma horas e vinte e cinco minutos quando se calou a última cigarra que ainda cantava, espantando todos os males de que pudesse padecer. Pouco depois cerrou-se o dia em noite e eu, que agora mesmo continuo a padecer às mãos do seu infernal calor, talvez arriscasse a cantar também, estivesse eu segura de assim espantar o dito. Pior é que, pela fraca voz e a certa desafinação, mais depressa assustaria a vizinhança do que aliviaria a calma.

domingo, 5 de julho de 2020

Passeio de domingo (496)


Não chegou a ser passeio. Só uma manhã  de praia com pouca fotografia e mais leitura com vista mar.








Unicórnios


Os dois unicórnios eram muito parecidos um com o outro. Corpos brancos, chifres de ouro. Vi-os chegar, à vez, cada qual com sua donzela. O primeiro manteve-se à sombra do guarda-sol da família da menina. O segundo correu para a beira-mar e lá esteve, embalado pela suave rebentação das ondas, durante todo o tempo em que estive na praia. As águas, claras e mansas, pareceram tornar-se mais brilhantes com a sua chegada. Dois metros diante de mim, instalaram-se os avós e seus três netos, a quem, a meio das brincadeiras, alimentaram a ovos cozidos temperados com mostarda. Ou seria maionese. Nem sei. As cores de todas as coisas presentes, mostravam-se mais intensas. Assim o branco da renda que forrava a cesta de praia da mulher sem guarda-sol, que se sentou dois metros à minha esquerda; assim o verde aveludado dos limos que cobriam as pedras descobertas pelo recuo da maré; assim o azul do horizonte que fundia mar e céu; assim o amarelo de uma pequena concha de madrepérola meio enterrada na areia. A manhã estava vibrante e nem as queixas do vendedor de bolas de Berlim, parado à distância de segurança da família de quatro que se abasteceu da sua doce mercadoria, conseguiram ensombrar a luz que teimava em pairar sobre os distanciados banhistas deste domingo.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Gelado


Sentada à sombra do telheiro, que me alivia do calor da tarde, trinco a cobertura de chocolate branco e frutos vermelhos do gelado que diz que é de panna cotta e reparo, no céu, ainda azul, que a lua já se mostra, em modo aproximado de três quartos, anunciando que em breve jogará sobre mim todo o seu feitiço. Mas a lua até nem é, pelo menos por agora, para aqui chamada. O que me deleita hoje é mesmo o gelado que vou comendo, nem muito depressa, nem muito devagar, mordendo a sua capa crocante e arrancando, também com pequenas dentadas, antes que se derreta, a sua consistente nata raiada de sabor cor-de-rosa vivo. É assim, a golpe de dente, que como gelados. Outras pessoas, como muitas que conheço, preferirão consumi-los à força de lambidelas. Quanto a mim, assumo o meu modo mais violento de proceder à operação. Mordo o gelado e só me apiedo ligeiramente de cada pedacinho que vou retirando dele, deixando-o então derreter sobre a língua, boca fechada, feita estufa, até o engolir.