terça-feira, 16 de novembro de 2010

A empreita


Os ramos de palma eram, primeiro, postos a secar. Pareciam pequenos leques que, depois, haviam de ser rasgados pelos dedos ágeis da avó que, com o polegar, separava cada fina folha da palmeira anã. Com o seu gesto brusco e firme, soltavam-se minúsculas partículas de pó que pousavam sobre a roupa preta que vestia, atenuando-lhe o luto com uma frágil película de cor bege.


Depois ainda era preciso demolhar a palma para que pudesse ser entrançada sem quebrar. Já não sei se era antes ou se era depois mas, na preparação da empreita havia também aquele momento fascinante para mim, criança, quando a avó colocava um pequeno pedaço de enxofre numa lata e lhe deitava fogo. Acho que era uma velha lata de graxa para sapatos. Uma chama azul tremia no ar por breves instantes, só o tempo da avó agarrar na lata com uma tenaz e a fechar num grande saco onde já estavam as folhas de palma para serem branqueadas.


Por fim, os dedos da avó começavam a trabalhar e era algo de mágico ver crescer aquela trança, mais ou menos larga consoante o número de hastes que se cruzavam umas nas outras. As tiras de empreita iam crescendo e ficavam arrumadas em rolos, até ao momento em que viriam a dar forma a uma alcofa. A avó, sentada na pequena cadeira de atabua, com um molho de palma enrolado num trapo velho humedecido, fazia empreita escolhendo com arte cada folha, ripando as mais largas com os dentes para que a tira fosse sempre crescendo certinha.


E a baracinha? Claro. Também havia que fazer a baracinha, o fio que servia para cozer as tiras de empreita.


Também eu fazia baracinha. E tinha jeito para a coisa. Enrolava a folha de palma à vota do dedo que servia de esticador no início do trabalho. Depois de algumas torcidas na folha, já podia soltar o dedo e continuar a torcer, acrescentando as folhas necessárias até a baracinha atingir o comprimento ideal.


Lembro-me também da agulha de cobre que guiava a baracinha por entre as folhas entrançadas da empreita. Era uma agulha gigante e achatada. Pergunto-me se ainda a encontrarei por aí, esquecida numa qualquer gaveta. É que há tanto tempo que ninguém faz empreita cá em casa.

5 comentários:

  1. Essa recordação de fazer empreita tinha-se-me apagado da memória até agora! Mas pelos vistos, o “apagador” não foi muito eficiente pois este seu post trouxe-a ao presente... Sim, lembro-me agora de, quando era “moça” pequena, ter experimentado a fazer um capachinho! : )

    Como é bom visitar o seu blogue! É tão criativo!

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  2. Luísa,
    Este texto, enquanto memória viva, é um autêntico documento.
    Parabéns!

    Beijo :)

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  3. Tantas coisas que as nossas avós faziam e nos encantavam...
    e que saudades!

    Bjos

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  4. Que belo retorno à infância, muito bem descrito dá para apreciar cada detalhe da empreita.
    Desconhecia esta arte,como sou alfacinha nunca tive o privilégio de a apreciar.

    Beijinhos

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  5. Simplesmente delicioso este texto.
    Não me lembro de ter uma avó que tecesse a folha da palmeira anã, porque se de uma parte se trabalhavam as redes de pesca, do outro a enchada ocupava o tempo que um dia tinha de luz.
    Ainda assim, não tendo avós, tive com certeza muitas vizinhas, que me deixaram essas recordações e que hoje tento trazer do passado para que o "saber" não se perca.
    Ainda existe muita gente conhecedora desta arte, mas já não compensa passar horas tecendo a palma dizem elas.
    Em jeito de "apanhadora" de costumes e tradições, joguei as mãos e a curiosidade á "obra" e lá vou desvendando aos poucos os segredos desta arte, quanto a mim tão bela, para que um dia a consiga passar á geração seguinte e que a mesma por sua vez transmita o conhecimento de forma a não deixar assim "morrer" a empreita do Algarve.

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