segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Caminhada

Caminho no mesmo caminho de sempre. Caminho na mesma hora de sempre. Ou quase. O corpo corta o mesmo vento de sempre. O chão, sob os meus passos, ressoa o mesmo som de sempre. Os cães latem e ladram nos mesmos quintais de sempre. Os grilos ensaiam a mesma cantilena de sempre. Como sempre um ou outro comboio passa. Como sempre ouço o aviso sonoro da cancela que fecha e que abre. Vejo as mesmas sombras de sempre nas folhas trémulas das árvores. À passagem pelas amendoeiras que carregam de flor na devida época, lembro-me sempre do bêbado caído junto ao muro que vi numa caminhada com as de sempre. Os cheiros da noite são os de sempre. Como sempre, o corpo aquece no movimento. Como sempre rola-me uma ou outra gota de suor pelo peito. Como sempre.

E vai crescendo uma melancolia que me envolve e me pesa. Acelero como quem precisa de se distanciar, de se soltar daquilo que nunca muda. Então, nesse preciso momento vejo-a. Em equilíbrio sobre o fio elétrico, iluminada pelo candeeiro público, vê-me também.  E observa-me do mesmo modo que a observo. Tal como eu viro a cabeça para trás para a manter mais uns segundos no meu campo de visão, ela vira a cabeça para o meu lado e acompanha-me no movimento. De olhos nos olhos, a coruja lança-me um feitiço e faço o resto do caminho, leve, sabendo que nunca nada é como sempre.

10 comentários:

  1. Mais um texto muito bem imaginado e construído.

    ResponderEliminar
  2. As palavras que habitam este texto transformam-se em imagens e assim terminamos por acompanhar o voo dos protagonistas:)

    ResponderEliminar
  3. Também faço uma caminhada diária, pelo mesmo caminho de sempre.
    Como sempre é tudo igual, até as pessoas com as quais me cruzo, dia após dia. Culpa dos médicos, que receitam caminhadas como se fossem analgésicos.
    Não sinto melancolia, porque me acompanha uma amiga super divertida e fartamo-nos de rir, como duas tontas.
    Vou ficar atenta ao piar das aves. Também quero uma coruja...:)

    Beijinhos Luísa. Obrigada pelos teus inspiradores pensamentos.
    Como alguém disse: «Não plagia, quem pelos bons textos se guia»

    :)

    ResponderEliminar
  4. Luísa, gosto muito deste teu texto.
    Apesar de se adivinhar o tipo de desfecho, não perde o ritmo e dá vontade de ler.

    ResponderEliminar
  5. O mesmo de sempre, sempre acaba bem. As caminhadas, as corridas, as pedaladas, o ar, o céu, o nosso chão e as corujas têm esse poder de nos deixar mais leves :) Bjs

    ResponderEliminar
  6. Como sempre, somos nós que conseguimos mudar "o mesmo de sempre". Ainda bem que assim é, luisa. Gostei da tua sapiente, curiosa, coruja. :)

    ResponderEliminar
  7. Uma prosa quase poética, tanto na forma como na conclusão... :)

    ResponderEliminar
  8. A versatilidade é uma grande qualidade, Luísa.

    Um beijinho :)

    ResponderEliminar
  9. Um texto espectacular...
    O sempre... é apenas um momento que gostamos de imaginar que existe... tudo está em mudança permanente... mesmo não o notando...
    Beijinhos
    Ana

    ResponderEliminar
  10. Gostei muito… do texto e da mensagem que lhe está subjacente… A dada altura, mesmo nos momentos em que tudo parece sempre mais do mesmo, há uma pessoa, há um lugar, há uma inspiração que nos faz avançar, sair da zona de conforto e voltar a ter “cor”.

    ResponderEliminar