sexta-feira, 23 de julho de 2010

A balada dos passantes

Em cada fim de tarde, quando saio para a rua depois de um dia de trabalho, percorro quase sempre o mesmo caminho para encontrar o meu carro no mesmo lugar de estacionamento de sempre. Piso vezes sem conta as mesmas pedras da calçada, contorno os mesmos pilaretes, olho para as mesmas vitrinas, para as mesmas mesas nas esplanadas dos cafés. Cruzo-me frequentemente com os mesmos olhares dos passantes que, como eu, rotineiramente seguem os seus percursos, nos seus corpos diários vestidos ao sabor da estação. Por vezes, porém, um ou outro passante assume-se como solista desta balada e altera por instantes o seu ritmo. Há, assim, certos dias em que sou apanhada numa reviravolta de novas e bizarras sonoridades que se manifestam em contraponto a outras tantas estranhas pausas e silêncios. É primeiro o sobressalto provocado pelo cumprimento do condutor daquele carro parado enquanto atravesso na passadeira. Conhece-me e eu não me lembro? Tomou-me por outra pessoa? Ou dirige-se a alguém atrás de mim? Pouco tempo tenho para me recompor da dúvida e já duas senhoras tentam oferecer-me literatura religiosa. “É para a menina ler em casa”. A “menina” eu? Olha que bom, tratarem-me por menina. Passo adiante de sorriso aberto reflectido no interior do peito e elas guardam os papéis para outra qualquer menina que finalmente os aceite. Já sobre rodas, sigo rumo a casa e passando a rotunda, ao sair da cidade, vejo lá especado um homem que segura um cartaz. É um papelão daqueles em que se escreve o destino para onde se pretende uma boleia. O homem está ali, na beira da rotunda e no seu cartaz posso ler: “Deus é bom”.

Realmente, há dias em que as notas desta balada dos passantes me surpreendem.

9 comentários:

  1. Essa da menina, também, já me disseram o mesmo mas a menina já ficou para trás há muito tempo e Deus é bom, mas não o que fazem em seu nome ;)

    Bjos e Bom Fim de Semana... menina :)

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  2. Isa,
    Pois a menina de cá também já vai longe...mas quando nos chamam assim só podemos achar mesmo que Deus é bom...:)))

    Tulipa,
    Sim... e às vezes passo por outros caminhos.:)
    Bom fim de semana!

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  3. Como as minhas horas de netrada e saída não são certas, poucas são as pessoas com que me cruzo diariamente. No entanto, todas as manhãs, seja qual for a hora, à saída do metro encontro um fulano a distribuir publicidade ao prof. Mamadu
    Bom fds

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  4. Muito, muito bom este post. Gostei da musicalidade com que descreveste o dia-a-dia.

    Ah é verdade,também costumo ver esse homem com o cartaz na mão, a frase é que nem sempre é a mesma.

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  5. Bom sintoma, esse, de reparar nas pequenas coisas que alteram a rotina. Há quem já não repare em nada nem em ninguém, por mais que chovam picaretas.

    Bjs

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  6. Quanto à publicidade, caro Carlos, por cá não temos prof. Mamadu, mas temos outros. Raro é o dia em que não encontro no meu pára-brisas os reclames do Prof. Lamine, por exemplo.

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  7. El Matador,

    Obrigada... hum, bem me parecia que costumamos deambular por cenários comuns. :)

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  8. AC,
    Na verdade vivemos num mundo um quanto anestesiado...

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