Não sei se já te disse daquilo das
poeiras. Foi no outro dia, ao fim da tarde, quando regressava a casa. O ar
estava leve, varrido pelo vento de setembro. Era aquele vento macio – sabes? –
que te lambe a pele como um gato lambe os pelos, que faz estremecer docemente
as folhas das árvores e que atenua o calor dos dias, ainda, de verão. Por certo
transportadas por esse vento, pairavam, aqui e ali, umas finas partículas que
não consegui identificar de imediato.
Via-as suspensas nas roupas das
pessoas que passavam e que o tal vento fazia dançar junto aos seus corpos.
Via-as também muito concentradas no branco fofo de uma nuvem que se arrastava num
rasgo ainda azul do céu. Uma ou outra aparentava brincar sob as folhas caídas
de um plátano, denotando uma certa saudade do outono. Via-as ainda, ao
lusco-fusco, dançando, em jeito de equilibristas, sobre um traço de avião que,
não sei como, atravessava a lua cheia já visível a leste e que começou então a
perseguir-me pelo retrovisor do carro.
O mais estranho era eu também
sentir as tais partículas, poeiras do mais fino toque, no tom do vocalista dos
Dire Straits, que cantava so far away from me no rádio do carro. E
eu, com a lua a nascer atrás de mim e o sol já a pôr-se na minha frente, vi,
subitamente e com toda a clareza, que aquelas partículas só poderiam ter-se escapado
de um poema que estivesses, naquela tarde, a escrever, junto a uma janela
aberta, com uma ínfima nesga de vista sobre o meu pequeno mundo. E só pode ter
sido por essa nesga que, inadvertidamente, chegou até mim aquele fino pó de poema.