Sofia de Mello Breyner Andresen
In “O rapaz de bronze”, 11ºed, Lisboa, Salamandra, 1994, p.9
Sofia de Mello Breyner Andresen
In “O rapaz de bronze”, 11ºed, Lisboa, Salamandra, 1994, p.9
Estou muito satisfeita. Comprei hoje um par de sapatos e já se sabe, esta é uma compra que deixa qualquer mulher feliz. São uns simples mocassins castanhos. Razinhos. Sim, que eu não sei andar devagar e além disso tenho uma relação de amor e ódio com os sapatos. É que quase todos me magoam os pés. Especialmente os que acho mais bonitos. Saltos altos então... Saem uma ou duas vezes à rua e passam o resto da vida, novinhos em folha, na sapateira.
Eu sei que são lindos os sapatos de salto alto. Eu sei que nós, mulheres, parecemos logo outras quando os calçamos. Mas também sei que nos ficam muito melhor se nos mantivermos paradas. Quando caminhamos, a história é outra. A não ser que se tenha muito treino, equilíbrio e elevada capacidade de sofrimento, a coisa fica frequentemente ridícula.
Ainda hoje, pela manhã, a caminho do trabalho, vi uma mulher que seguia à minha frente no passeio e coitada… como se não bastasse a altura dos saltos ainda tinha que fintar a calçada portuguesa. Sem contar que a forte inclinação do sapato lhe fazia deslizar o pé para a frente, saindo-lhe o calcanhar para fora a cada passo que dava. Resultado: os seus passos receosos e desengonçados nada tinham de elegante. Assim como nada tinham de elegante uns passos iguaizinhos que vi, no verão passado, dados pela estilista Fátima Lopes quando chegava ao concerto da Diana Krall,
O pior é que os designers de sapatos insistem em aumentar a altura dos saltos. Há uns que parecem verdadeiras andas. E lá vamos nós, fingindo que é muito fácil, fingindo que é como calçar umas luvas. Sim, fingindo. Porque eu não acredito que essas mulheres que calçam sapatos de Pin up ou de Cinderela, Louboutins que sejam, não sofram a bem sofrer. Pois se na minha roda de amigas e colegas, não há uma que não se queixe na hora de comprar sapatos! Digam lá o que disserem (ou não disserem), todas hão de ter uma curvatura do pé demasiado acentuada, ou antes pelo contrário um pé chato. Isso para não falar do joanete. Ou do calo de estimação. E é por isso que eu hoje estou muito satisfeita. Comprei um par de sapatos que não me vai fazer doer os pés.
Quando eu tinha por aí os meus cinco ou seis anos, chegado o Sábado de Aleluia, levantava-me cedinho animada pela excitação de tentar ganhar às minhas primas os “Contratos” da Páscoa que tínhamos selado no início da Quaresma. Estes “Contratos” eram estabelecidos com os dedos mínimos entrelaçados, recitando uma fórmula do género:
“Contratos, Contratos,
Contratos fazemos,
Para não tornar a desmanchar,
Quando por aí ver,
Mandar ajoelhar”
Assim, diariamente, quem primeiro avistasse o outro mandava ajoelhar, conforme o combinado. Mas, no Sábado de Aleluia, em vez de mandar ajoelhar, mandava-se oferecer e quem o fizesse primeiro ganhava o contrato e recebia as amêndoas da Páscoa de quem perdia. Era por isso que na manhã do Sábado de Aleluia me levantava cheia de entusiasmo e ansiedade. Dava-se como que um jogo de esconder em que usávamos as artimanhas possíveis para conseguir ver primeiro o outro e lançar-lhe com o “Oferece” em primeiro lugar.
Para além da fórmula que mandava “ajoelhar”, também havia a opção de mandar “rezar”. Ou então, faziam-se os chamados contratos de Santa Clara e aí a rima mandava que se desse “um beijo na cara”.
Hoje, levantei-me cedo porque afazeres domésticos a isso me obrigaram, mas enquanto me vestia, lembrei-me desta brincadeira dos meus tempos de criança e pensei como era simples e bonita a vida.
Na véspera veio a sogra que, já sobre a meia-noite, amassou como só as mãos daquela idade sabem amassar. Eu assisti, atentamente, segurando por vezes o alguidar e tentando fixar cada movimento dos seus punhos para, talvez um dia, tentar imitar o seu trabalho. Manhãzinha cedo, já com a massa levedada, foram tendidos os folares. Por fim, cumprida a missão do velho forno de lenha, aqui ficam eles para a “prova”, com votos de Páscoa Feliz.
Há três dias, já, que acordo ao som das águas de abril. Dizem que são mil. Pois, serão. Algumas chegam com o som do trovão e gritam contra os muros e contra os vidros. Gritam de alegria e despejam-se a cântaros sobre a terra que as acolhe e encaminha para a sua tarefa de dar vida às plantações.
Enrolada nos lençóis, fico à escuta do concerto matinal. Do fortíssimo inicial, sobra às tantas um pianíssimo que se arrasta telhados abaixo. Saio da cama, espreito à janela e vejo que até os pardais do telheiro saltaram para cima do muro da vedação e aproveitam as últimas gotas, que agora caem sobre eles, frouxamente.
O certo é que a vi. Vi, sim. Mas bastou o tempo de preparar a máquina, de ajustar o zoom, para que, logo, logo, ela se esfumasse e se escondesse de mim. Tal como ela se escondeu entre a mão do Manuel e a mão da Tia Bia.
Mas eu sei que ela está ali, sossegada, aninhada em silêncio no quentinho da pele.
Gosto de ler o que esta Ana escreve. Nenhum dos seus posts me deixa indiferente. Podem suscitar-me admiração, inveja, irritação. É uma escrita viciante. Gosto de a ler quer o conteúdo me agrade ou não. Estou sempre de olho nas suas actualizações para não lhe perder uma palavra. E agora há uma palavra que desconheço e que me deixa
Eu que, tal como ela, gosto de ler Lídia Jorge e que também estou a ler A Noite das Mulheres Cantoras, como é que vou conseguir chegar ao fim daquelas 317 páginas, desconfiando de cada uma das mais inócuas palavras que vou encontrando nelas? Fiquei com a leitura inquieta. Olho para cada página em sobressalto, achando que a qualquer momento uma palavra se vai soltar da linha em que se encontra e me vai gritar “Sou eu”, “Sou eu”. Todas as noites, pego no livro pousado na mesa-de-cabeceira e prossigo a leitura neste desespero, morrendo de curiosidade e olhando para cada palavra de soslaio. É desta que vou ficar com os olhos
Sempre gostei destes bonecos. Parece que está para chegar um filme 3D com os ditos. Estive a ver o trailer só para ficar bem estrunfada e esquecer a crise.
Enquanto aguardo que o semáforo passe de novo a verde e a fila retome o movimento, um rapaz atravessa a estrada. O meu filho reconhece-o, abre a janela do carro e chama-o para lhe propor boleia para o resto do caminho até à escola. “ Salgadinho…”, chama o meu filho. “Sal…”. E rapidamente o miúdo entra no carro, mesmo a tempo de não prolongar a espera dos carros que pararam atrás de mim. Sigo caminho. Deixo-os à porta da escola. Continuo o meu percurso com o pensamento a recuar até ao tempo em que eu tinha a idade do meu filho. Nessa época, frequentava alguns bailes das sociedades recreativas locais e, sob o olhar vigilante da minha e de outras mães, dançava. Houve uma altura em que dancei com um rapaz que também se chamava Salgadinho. Em 32 anos não me lembro de ter mais alguma vez ouvido este nome.
Travo o carro na fila que se forma às ordens da luz vermelha do semáforo. Olho, em modo automático, pelo retrovisor e avisto o carro que atrás de mim pára também. É um citroen vermelho, novinho
Forma-se uma fila no semáforo. Travo o carro e aguardo por uns minutos que o tráfego retome o movimento. Nos passeios os peões apressam-se na manhã, para chegar aos seus destinos. Alguns aproveitam a paragem do trânsito e atravessam a estrada ziguezagueando por entre os carros. Entre eles passa uma cigana. Veste uma roupa garrida e carrega uma trouxa à cabeça. É um volume grande, envolto num pano florido. Ela atravessa a estrada em passo lesto, mantendo, graciosamente, a carga