quarta-feira, 23 de maio de 2018

A senha


Fui ao banco. A dependência renovada apresenta-se com salão de espera para clientes que, refastelados nos sofás, olham para um ecrã gigante (gigante ao ponto de ocultar da vista geral os dois balcões de caixa) onde seguem o evoluir das senhas. Pois. As senhas. As senhas que quase foi necessário um curso para tirar. A renovada dependência tem agora um dispensador de senhas com teclado touch que requer a introdução de um número de identificação do cliente antes de prosseguir para a seleção do serviço pretendido, antes de indicar se é de atendimento prioritário, antes de confirmar que quer imprimir. Vale que um seleto funcionário veio em socorro da mulher que entrou à minha frente, mantendo-se no posto para, também a mim, me explicar todos os passos a seguir. Lá inseri o número de contribuinte – para melhor gestão de clientes, explicou o bancário. E por aí adiante com os dedos a martelar no novíssimo ecrã do dispensador de senhas. Já sentada frente ao painel eletrónico, aguardando a chamada, senti uma estranha saudade de uma fila única, simples, sem requisito de senha.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

domingo, 20 de maio de 2018

Passeio de domingo (406)



Pela manhã, entre os Salgados e a Praia Grande, longe de adivinhar a chuva da tarde.










Trópicos


Enquanto edito a centena de fotografias batidas ao sol da manhã, escurece o céu, levanta-se o vento, explode o trovão e desaba a chuva. A casa está quente e deixo a porta do escritório aberta sobre a varanda. Uma cortina de água turva ligeiramente o ar, embate com força no muro, alaga do chão o terraço. Calaram-se os pássaros e entra por aqui um forte cheiro a terra. Imagino-me nos trópicos equatoriais pelo escasso tempo de uma trovoada de maio.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Escâncara


Enquanto lhe lavavam a cabeça, a senhora das sapatilhas amarelo vivo com pintas pretas resolvia assuntos ao telemóvel. O salão, pequeno, deixava que todos ouvissem o que dizia. O modo altifalante do aparelho obrigava a que todos ouvissem a totalidade da conversa. Bolas. Com tudo assim escancarado, nem sobrou sequer uma nesga de espaço para a imaginação.

domingo, 13 de maio de 2018

sábado, 12 de maio de 2018

Uma enfermidade incurável e pegadiça



-Ai senhor! – disse a sobrinha, bem os pode vossa mercê mandar queimar como aos demais, porque não seria novidade que, tendo sarado o senhor meu tio da enfermidade cavalheiresca, em lendo estes lhe aprouvesse fazer-se pastor e ir-se pelos bosques e prados, cantando e tangendo, e, o que seria pior, fazer-se poeta, que segundo dizem é enfermidade incurável e pegadiça.

Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, Publicações Dom Quixote, 2017.

[no capítulo em que o cura e o barbeiro escrutinam os livros de Dom Quixote, decidindo sobre o destino a dar-lhes]


segunda-feira, 7 de maio de 2018

Agradecer


Ia eu a passar pela rua dos blogs, espreitando pelas janelas entreabertas, entrando discretamente nalguns deles, descaradamente noutros, instalando-me até naqueles que mais aprecio para ler devagar os postais do dia e os anteriores que porventura me tivessem escapado, quando dou por mim posta na melhor das companhias pela mão da generosa Miss Smile. Logo se desenhou na minha boca um O de espanto feliz ao mesmo tempo que olhei, inquieta, para a minha caixinha de palavras, tão vazia, tão pobre, tão esgotada… Como poderei retribuir condignamente? À míngua de competência para me chegar sequer aos calcanhares da senhora das Notas de Chá, não me resta senão, simplesmente, agradecer.


domingo, 6 de maio de 2018

Passeio de domingo (407)


Sairei em breve para um passeio que há de servir um domingo próximo. Por hoje o passeio faz-se das flores colhidas ontem e que ofereço a todas as mães que por aqui passem.









Mãe


Maior
Amor não
Existe

Mães


(…)
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
(…)

Herberto Helder

Mamãs


  À minha querida mamã

Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.

Fernando Pessoa

Um blog


Se ao tempo dele fosse dado haver blogs, como titularia o seu o Fernando Pessoa?

quinta-feira, 3 de maio de 2018

A mão


O homem de cinquenta anos e cabelo pelos ombros está à minha frente na fila do supermercado. A seu lado a mulher conduz o carrinho das compras. Trocam algumas palavras que nem ouço. Hoje só vejo. Vejo a mão direita do homem enfeitada com cinco milímetros de aliança de aço trabalhado. Vejo-a pousar sobre as costas da mulher e afagá-las suave e repetidamente.