quarta-feira, 4 de maio de 2011

Rua Abade Faria

A D. Maria, a quem aluguei um quarto nos meus dois últimos anos de estudo em Lisboa, era uma velhinha de cabelo ralo e branco, nariz adunco e olhos translúcidos que, à época, já ia para além dos 80 anos. Alugou-me um quarto interior, com mobília pintada, tipicamente alentejana, e que para além da porta que dava para o corredor da casa, tinha outra que dava para a sala, onde eu muitas vezes me sentava para estudar.
A D. Maria tinha terríveis dores de cabeça e levava os dias a tomar Dolviran. Nunca eram suficientes… os Dolviran. Ela tomava-os sem conta, até que ficava doente do estômago. Mas como o pior eram as dores de cabeça, desse por onde desse, a D. Maria nunca dispensava os seus comprimidos Dolviran.
Na casa da Rua Abade Faria, entre o Areeiro e a Alameda, vivia outro inquilino. Ocupava o quarto ao lado do meu. Era um senhor só e silencioso de cujas feições não consigo lembrar-me. Também não saberei recordar que profissão teria. Mas, para além disso era poeta.
Em Janeiro de 1985 autografou-me um dos livros que me ofereceu e que reencontrei hoje na minha estante. Na sua dedicatória, explicava que me oferecia palavras sobre o Alentejo, vizinho do meu Algarve. Citava poetas algarvios e agradecia-me por sempre ter atendido cuidadosamente os telefonemas que lhe eram destinados.
Ao fim destes anos todos, só porque me lembrei dos Dolviran da D.Maria, o poeta apareceu-me pela frente. Busquei-o então no Google e, em breves instantes fiquei a saber mais sobre o Sebastião Penedo do que em dois anos de vizinhança de quarto. O Google é uma grande coisa. Mas ainda assim, não tão grande. Da D. Maria não há rasto. Só dos seus Dolviran.

8 comentários:

  1. Querida luisa, que memórias deliciosas e que bem as transcreveste :)

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  2. lol essa dos Dolviran... era miúda e lembro-me desses comprimidos e suponho que também havia em supositórios... hoje não faço a mínima ideia se existem... mas ainda bem que nem tudo vem na net... por enquanto... porque com a mania do facebook, daqui a uns anos, uma Maria que tenha agora 15 anos, quando chegar aos 80... até se deve poder saber a marca de pensos higiénicos que ela usou lol

    Bjos

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  3. Engraçado que o nome da rua não me era estranho, só depois é que percebi porquê: moravam lá os pais de um ex-cunhado meu, onde cheguei a ir a algumas festas.

    Gostei da história da D. Maria e dos seus Dolvirans, mas realmente não deixa de ser estranho que não saibamos nada de pessoas que nos estiveram tão próximas. Mas claro que o Google ainda não dá informações sobre cidadãos anónimos, só de pessoas que se destacaram de algum modo... Talvez um dia ainda lá chegue! :)))

    Beijocas!

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  4. Deixa-nos sempre uma sensação esquisita, a tomada de consciência de que anos atrás não soubemos aproveitar as pessoas que tivemos... Gostei deste texto... =)

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  5. luisa, é assustador a comparação que fazes. Conhecer mais através desta máquina do que em anos de convívio. É o que temos, e o melhor é aprender a fazer bom uso. Os comprimidos Dolviran lembram-me o meu avô que também tomava sempre 2, 3, 4, 5 de cada vez, dizia que se um fazia bem era melhor tomar logo vários. beijinhos :)

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  6. Se com a mudança de cidade se perde o contacto com tanta gente que conhecemos, imagina agora o que acontece quando se muda de país ... e/ou de continente. É isso que também me causam muitas saudades; saudades de tempos que nunca mais voltam... : )

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  7. O acaso (enquanto pesquisava quem era o senhor que dá nome à rua) fez-me vir aqui parar. É engraçado, já que vivo na Abade Faria e sou do Algarve e estou cá a estudar. É só isto. :)

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  8. Uau! É uma coincidência mesmo estranha, não fazia ideia de quem era este blog.
    Agora lembro-me da Débora ter falado que a mãe tinha vivido ao pé do técnico, sim. Que giro. :)

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