Entro na sala de estar do rés do chão. É grande. Tem as paredes pintadas de bege. É um bege cor de mel do mesmo tom dos ladrilhos do chão. Do mesmo tom dos maples alinhados ao longo das paredes e também em filas perpendiculares a estas, acentuando a geometria do espaço. Cadeiras de rodas ocupadas por quem padece de alguma qualquer dificuldade de locomoção completam o cenário. Num dos cantos da sala, pregado junto ao tecto, um ecrã de TV difunde cores e movimento a que ninguém liga. O som, esse, está desligado. Na sala os sons são outros.
Avisto a Tia e desloco-me para junto dela. A seu lado, uma mulher de cabelo cortado curto vira para nós o seu olhar vazio. Vai desabotoando a camisa bege cor de mel que traz vestida. É da mesma cor das paredes, da mesma cor dos maples, da mesma cor do chão. Em breve soltará um dos braços da manga e deixará ver a camiseta que traz por baixo da blusa. Com um fio de baba a pender-lhe da boca, voltará a abotoar a camisa e novamente a desabotoá-la, num movimento contínuo que lhe ocupa o dia.
Ao lado da porta da sala, sentado numa cadeira, um homem barrigudo encosta a cabeça à parede. Olha para o tecto através dos seus óculos de grandes aros pretos. Desata a cantar. Ninguém o ouve. Nem a ele, nem à mulher que, sentada por baixo do ecrã de TV, cantou anteriormente numa voz fina e esganiçada.
Perto da Tia senta-se mais uma mulher. Lamenta-se e chora um choro fininho. Outras mulheres circulam pela sala. Saíram da ala dos quartos e agora passam pelos companheiros de tecto, carregando as suas malas de mão como se fossem a passeio à rua.
Na sala ao lado, tilintam os pratos e os talheres que as empregadas colocam nas mesas para o jantar. Pelas vidraças que dão para o pátio, vejo as árvores a dançar com o vento. Ao fundo uma nesga de mar faz ton-sur-ton com o céu. Há mais uma mulher que começa a cantar. "É a Bi-Deolinda", diz-me a Tia. Tem 96 anos. Não parece. Canta de olhos fechados um qualquer romance com personagens trágicas. Há mais uma cadeira de rodas que faz a sua entrada na sala. A mulher que se senta nela destoa de todas as outras. Parece arranjada para uma festa, com o cabelo armado por um vigoroso brushing. "Essa é uma senhora fina", explica novamente a Tia. "É mãe de uma doutora, dessas que tiram os meninos das barrigas das mães".
Ao fim de uma hora, dou por terminada a minha visita. Despeço-me da Tia. Dirijo-me para a porta lançando um boa tarde para todos. Olho mais uma vez para aquela mulher que levou o tempo todo a simular que se levantava da cadeira de rodas, apoiando-se nos punhos em esforço.
Cá fora recebe-me o ar ameno do fim de tarde. Subo a rampa em direcção ao carro, soprando repetidamente, como se o meu sopro conseguisse secar as lágrimas que deslizam no meu rosto.
Publicado também para a Fábrica de Letras
Percebo-te... Sabes que tenho uma prima, enfermeira reformada, trabalhou durante muitos anos num Lar de Idosos, perto da Assembleia da Republica. Eu visitava-a com frequência e a todos os moradores do dito Lar e via a docura com que todos eram tratados, mesmo assim, quando de lá saía, ficava com o registo de certas imagens pesadas que ainda hoje recordo.
ResponderEliminarSofiaAlgarvia,
ResponderEliminarPor muito bem que sejam tratados estes idosos e apesar de aparentemente poderem conviver uns com os outros, sente-se o peso esmagador da solidão que cada um deles carrega... Observá-los transforma-se numa dolorosa catarse...
Nessas alturas, choramos por muitos motivos, mas, um deles, será... talvez por vermos a incerteza do nosso futuro...
ResponderEliminarBjos
Luísa,
ResponderEliminaro seu texto retrata o lugar que frequentam aqueles que eu gosto de chamar de 4ª idade. É um texto muito real da nossa sociedade na última etapa da vida.
Também eu visito uma casa de repouso na minha aldeia, onde estão a viver algumas pessoas que me são muito queridas e outras que me viram nascer e crescer. O lugar é lindo,não tem vista para o mar mas para o rio e para os arrozais onde as cegonhas voam livremente. Os quartos são individuais ou suites e podem levar as suas mobílias e roupas de cama, para que se sintam mais em casa. São muito bem tratados e se por ventura derem entrada no hospital, depois, poderão regressar ao mesmo lugar, pois funciona no mesmo espaço uma unidade de cuidados continuados. Contudo, doi-me muito ver pessoas que outrora tão enérgicas, agora, com algumas das suas faculdades já tão diminuídas, e doi-me mais cada vez que vou lá pois, num pequeno espaço de tempo algumas já não se recordam de mim ...
Um beijinho
O que é mais triste é quando vem a velhice mas que por dentro, fica-se novo. A avo do meu marido viveu sozinha na casa dela até os 101 anos. Ela teve que ir para o hospital em geratria e queixava-se dos velhos, que eram chatos e que nao tinham conversa com jeito. Quando ja nao houve outra hipotese de que a por num lar, tenho a intima conviccao que ela se deixou morrer (faltava 10 dias para festejar os 102 anos).
ResponderEliminarUma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.
ResponderEliminarSándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'
Uma Boa Noite ! Palma
Esta solidão acompanhada é o que mais me assusta na velhice. Porque infelizmente é o que nos espera a todos.
ResponderEliminarBeijinhos
Isa GT,
ResponderEliminarOu será a certeza de vermos o nosso futuro como que ao espelho...
Mary Jo,
ResponderEliminarE dói-nos imaginar que também nós acabaremos por perder essas faculdades.
Anónimo 19:14,
ResponderEliminarA minha avó viveu durante muitos anos em casa das suas filhas, mas quando foi para o lar, com 96 anos, parece que foi um processo relâmpago. Em pouco tempo se foi. Claro que, com a idade que já tinha, pouco havia que esperar, mas fica-se sempre com a sensação que talvez não tivesse que ser assim.
Palma,
ResponderEliminarObrigada por partilhar esse belo texto. E é isso... já não se espera nada...
Tulipa Negra,
ResponderEliminarÀs vezes não é só na velhice...
Eu nem queria chegar tão perto... da verdade ;)
ResponderEliminarBjos
Texto bastante real Luísa. Cru.
ResponderEliminarMuito bom.
O problema da velhice toca-me tanto que nem me apetece comentar. Ao que chegou a nossa sociedade...
ResponderEliminarBeijo :)
Beijinho, Luísa.
ResponderEliminar:))