A caminho do outono.
O espaço de areia seca na praia ficou mais curto, obra das marés vivas de setembro, acredito que desafiadas pela lua, que já por aí anda cheia. Os banhistas ainda vêm em número apreciável e Lurdes aproximou-se do espaço aberto pela minha mudança de lugar ao sol para lugar à sombra. Foi logo falando como se nos conhecesse, não lhe apetecia caminhar para mais adiante, que a desculpássemos, até nem gostava muito de ficar assim em cima das pessoas. Apoiava-se num pequena sombrinha que, entretanto, pousou aberta no areal, presa ao saco dos seus outros pertences. Estendeu o pano fino que trazia em jeito de toalha, opção mais leve e ajustada ao seu corpo ao mesmo tempo forte e frágil, onde muito mais de 80 anos de vida certamente ancoravam. O louro platinado dos cabelos contrastava com o azul arroxeado dos seus óculos de sol, e animada pelo que me pareceu a verdadeira força da vida e uma vontade indómita de a manter longa, desatou a conversar, relatando as suas histórias, trazendo um rol infindável de personagens, filhos, netos, o marido falecido, a empregada, os amigos, os vizinhos, a menina que a desenhou com asas de anjo, o almoço que deu na semana passada, a decoração provençal da mesa, a louça de barro, a casa grande de férias que vendeu, a pequena que usa agora, o assalto que sofreu no comboio, o regresso a Lisboa na próxima semana. Enquanto dávamos por finda a nossa manhã de praia, Lurdes caminhou até ao mar. Ainda ia ficar até às duas.
A maré vaza da tarde entregou à praia uma medusa. As ondas acariciavam-lhe o corpo mole e gelatinoso enquanto os banhistas se debruçavam sobre ela e a fotografavam com os seus ávidos telemóveis. Ainda senti o meu a querer imitá-los, mas o nadador salvador, qual dono da praia, antecipou-se a qualquer ação minha e, com uma grande pá, removeu-a da zona de rebentação. Cavou depois um buraco e enterrou-a. Apenas uma espera transitória, imaginei, até que as marés seguintes, a coberto da noite, que entretanto chegaria, a devolvessem ao fundo do mar para a devida sepultura ou alimento de outras vidas.
Por causa disto, por causa de quem me avisou disto, e por causa de quem ainda passa por aqui e não merece deparar-se sempre com o parvo do saco azul.
Sendo assim, chegou o tempo de nos queixarmos do calor.
Por mim aqui vai. Estou fechada em casa, portas e janelas cerradas, a ver se o dito não encontra caminho fácil aqui para dentro. Sei, no entanto, que por muito que o contrarie, o maldito tem força de vencer. Um copo de água fresca, o leque em ação, o corpo, esse, não. O menor esforço físico – as tarefas domésticas mais urgentes ocuparam a manhã - é requerido. Quando chegar a noite, que quente se prevê, libertarei então todas as aberturas da casa, na esperança, talvez vã, de obter a ajuda de uma ou outra corrente de ar.
Perguntei se tinham combinações. A menina disse que sim e logo puxou de uma gaveta começando a mostrar-me uns calções de algodão que, por certo, combinariam com algum top. E eu, que não, não era isso, era uma combinação. Pela cara da moça, eu estava a falar chinês. Entretanto já se tinha juntado outra empregada da loja, que, tal como a primeira, parecia não perceber que peça de vestuário eu desejava. Lá expliquei que era para usar por baixo de um vestido. E enquanto puxavam de outra gaveta e finalmente me entregavam o que eu pedia, quis saber como lhe chamavam. Um vestido, disseram. Um vestido para usar por baixo de outro vestido. Recomendei que perguntassem às mães ou às avós sobre o nome desta peça de roupa interior e fiquei a matutar. Ou eu estou a ficar velha, ou há palavras em risco de extinção.
Um regresso à praia de pouca dura. O vento, insuportável vento, resolveu levantar areia e eu não estive para o aturar.