

É assim que costumo ver descritos os cremes de beleza.
Mas há um creme de beleza cuja descrição inesperada me levou à certa. Então, não é que a sua embalagem reza assim:
“Adorável produto de beleza que transmite à sua pele um encantador tom de frescura”
E ainda:
“Dissimulante das rugas e dos desfeitos da epiderme”
E mais:
“Admirável defensor da pele contra as rugas e o envelhecimento. Dá um lindo aspecto aveludado, faz desaparecer os pontos negros, manchas, pano e borbulhas e auxilia a fixação do pó de arroz”.
Ora, este creme que é adorável e admirável é igualmente uma deliciosa creação da Fábrica Nally. É o creme Benamor, que, se bem lembro, chegou a morar no pechiché da minha mãe. Dei de caras com ele no hipermercado e não resisti a este produto vintage, com tantos e inusitados atributos a povoarem-lhe a embalagem.
Todas as noites quando eu ia colocar o lixo no contentor, ali estava ele a cantar ruidosamente. Era mesmo junto à minha casa, naquele pedaço de passeio que continua à espera de ser reconstruído. Ali, na terra que sobrou das obras de saneamento básico, nasceram ervas daninhas que se encostaram a algumas pedras soltas de calçada e foi quase de certeza por debaixo delas que ele escavou o túnel que conduzia ao seu esconderijo. De volta a casa, depois de ter atirado o saco do lixo para o contentor, eu parava junto dele. Nunca o conseguia ver. Mas aposto que ele me via a mim. Sim, porque a certos movimentos meus ou posições que eu tomava, ele de repente silenciava o canto. Eu, muito quieta, esperava. Então, mais à vontade, ele recomeçava. Se eu me mexia, ele parava de novo. Por alguns instantes eu ficava ali, nesta espécie de jogo de esconder com o grilo que me ensurdecia a rua. Depois, chamada à realidade pelas tarefas domésticas que ainda me aguardavam em casa, regressava à minha vida.
Hoje dei conta do silêncio naquele local. E, pensando bem, o silêncio não é de hoje. Nem sei para quantos dias vai que já não ouço o grilo. Das duas uma: ou lhe chegou fêmea à porta de casa e estará em lua-de-mel no fundo do seu buraco, ou então chateou-se da vida, saiu para comprar cigarros e até agora não voltou.
Porque às vezes nos esquecemos de como a vida é bela.
Le vent dans tes cheveux blonds
Le soleil à l'horizon
Quelques mots d'une chanson
Que c'est beau, c'est beau la vie
Un oiseau qui fait la roue
Sur un arbre déjà roux
Et son cri par dessus tout
Que c'est beau, c'est beau la vie.
Tout ce qui tremble et palpite
Tout ce qui lutte et se bat
Tout ce que j'ai cru trop vite
A jamais perdu pour moi
Pouvoir encore regarder
Pouvoir encore écouter
Et surtout pouvoir chanter
Que c'est beau, c'est beau la vie.
Le jazz ouvert dans la nuit
Sa trompette qui nous suit
Dans une rue de Paris
Que c'est beau, c'est beau la vie.
La rouge fleur éclatée
D'un néon qui fait trembler
Nos deux ombres étonnées
Que c'est beau, c'est beau la vie.
Tout ce que j'ai failli perdre
Tout ce qui m'est redonné
Aujourd'hui me monte aux lèvres
En cette fin de journée
Pouvoir encore partager
Ma jeunesse, mes idées
Avec l'amour retrouvé
Que c'est beau, c'est beau la vie.
Pouvoir encore te parler
Pouvoir encore t'embrasser
Te le dire et le chanter
Oui c'est beau, c'est beau la vie
Se tem que chover, que chova. Que me importa? Mas que chova noite dentro. Que chova quando eu me tiver recolhido em casa e fechado as portas. Melhor, que chova quando, de luzes apagadas, eu me tiver recolhido entre os lençóis. E pode até a chuva dançar com o vento e roçar o seu vestido pelas minhas janelas. Que chova, enquanto me deixo envolver pelos encantos de Morfeu. Que chova, como canção de embalar. E pode até chover de madrugada. Que chova aquela chuva enfurecida, batendo fortemente nos telhados. Que chova para eu poder ouvi-la na hora em que, mesmo sem querer, vou acordar. Se tem que chover, que chova. Que chova enquanto posso desenrolar e enrolar de novo o corpo, no tempo ainda morno da manhã. Mas quando chegar o dia, que se retire. Que perca a sua força e se desvaneça nos primeiros raios de sol que vão brilhar. E quando eu pisar de novo o chão da rua, que apenas sobre o seu cheiro. Que sobre nas paredes e nos beirais onde pequenas gotas ainda vão escorrer. Que sobre na terra rubra do caminho e nas folhas fatigadas da alfarrobeira. Que sobre mesmo só o cheiro da chuva.
Publicado para a Fábrica de Letras