Passeio com pássaros, no parque ambiental de Vilamoura.
Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com receio de que não
te coubesse no dedo
Jorge de Sousa Braga
[Poemas Portugueses - Antologia da poesia portuguesa do séc.XIII ao Séc.XXI, Porto Editora, 2009]
Nisto dos blogues (ou blogs, como se preferir) e respetivos bloggers, dei por mim a imaginar identidades. Claro que há os que conheço pessoalmente e os que conheço porque são figuras públicas. Há também os que até parece que conheço porque se apresentam através dos retratos que publicam. Há os que, por pouco, quase conheço porque levantam de vez em quando uma pontinha do véu. E depois há os incógnitos, os que se abrigam no pseudónimo. Esses, imagino que conheço. Em Faro, por exemplo, cruzo-me frequentemente com um desses meus bloggers imaginados. Deixou de publicar há vários anos, mas a imagem que criei dele corresponde sem tirar nem pôr a um homem franzino, nos seus quarenta e seis ou sete, cabelo escuro semeado de alguns grisalhos, calças justas, sapatilhas. Sempre que passo pelo homem, lembro-me do tal blogger. E assim, com alguns outros, sigo agarrada a pistas que considerei, a sinais que traduzi de uma ou outra maneira. Estarei, como é mais do que provável, completamente equivocada, mas neste jogo de identidades, que apenas se desenrola no meu pensamento, estabeleço laços invisíveis, invento gente, aguço a fantasia.
Se queres saber,
colei-te a Proust.
Estou sempre a interrompê-lo
e ainda hoje o troquei
por Calvino,
que, quando chegar a hora
de dormir, encostarei
a Virgínia Woolf.
No teu caso,
não se trata de troca.
É, para já,
uma relação diária.
Enfim, bem vês,
é um caso
de descarada
promiscuidade literária.
Ainda não circula muita gente e a manhã cinzenta expõe as nódoas dos álcoois e outros indistintos líquidos acidentalmente derramados pelo movimento noturno. Grupos de ciclistas ruidosos, uma ou outra pessoa correndo e o intenso cheiro a fritos do “full english breakfast” anunciado nos vários placares publicitários dos restaurantes que vão acordando.
As quatro mulheres sentadas na esplanada do café conversavam animadamente e, no preciso momento em que passei por elas, na faixa de passeio sobrante, desataram a falar todas ao mesmo tempo. Tanto e tão ruidosamente que já eu me afastava e ainda lhes ouvia as respetivas gotícolas a entrechocarem-se no ar, antes de tombarem pesadamente sobre a mesa.
Eu que não sou de muita conversa em salas de espera, filas de supermercados, salões de cabeleireiro, meios de transporte e outras situações de sociedade, dei por mim a quase contar a minha vida toda à podologista, doutora tão hábil na extração do calo como em puxar assunto.
Absurdamente:
os espinhos da tua boca
transformam-se em rosas
... nos meus ombros
Maria Teresa Horta, Só de amor, Dom Quixote, 2009
(...)
Que outras coisas perdi? Quantas vezes na minha vida terei estado, por assim dizer, sentada no alpendres das traseiras, não no da frente? O que teria sido dito que não consegui ouvir? Que amor podia ter havido que eu não senti?
São perguntas vãs. (...) Fechar a porta à dor, ao arrependimento, ao remorso. Se os deixar entrar, basta uma nesga autocomplacente, zás, a porta abre-se por inteiro e eis que entra uma torrente de dor que me rasga o coração, que me cega os olhos de vergonha, parte chávenas e garrafas, derruba frascos e estilhaça janelas, faz-me tropeçar, ensanguentada, em açúcar entornado e em vidros partidos, sufocando de pavor até que, num último estremecimento e soluço, fecho a porta pesada. Apanho os cacos uma vez mais.
(...)
Lucia Berlim, Voltar a casa
in Manual para mulheres de limpeza, Alfaguara, 2020
Agora, cada vez que seleciono o “mostrar todos” da minha seleção de blogs, aquela que tenho ali ao virar da esquina e que se ordena pela atualização de cada um deles, o blogger leva-me vertiginosamente até aos últimos da lista. Aterro em títulos que congelaram há dez ou nove anos e vou passando por eles ao ritmo da pequena roda do rato que me conduz de volta ao tempo presente pela barra de deslocamento. Alguns de que já nem me lembrava, outros de que sempre me lembro. Uns que sei não poderão mais voltar ao topo da lista, outros que gostava tanto de rever cá em cima.