quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Um rosto


Sabes quem esteve cá hoje? Deves lembrar-te dela, dizem-me, contando da visita inesperada e de como gostaram do reencontro depois de tantos anos. Revelam que a Filomena já tinha estabelecido contacto há algum tempo através do Facebook. Hoje fez-lhes uma surpresa e à primeira vista nem a reconheceram. E eu lembro-me, sim. Lembro-me do seu nome e lembro-me dos seus cabelos longos e ondulados. Lembro-me de uma adolescente que padecia de uma doença grave, das conversas murmuradas das mulheres adultas, dos seus lamentos. A esperança flutuava em corredores de hospital, um frágil suporte a que se agarravam. Da sua recuperação não tenho memória. Terá sido já depois de meu regresso a Portugal. Lembro-me da Filomena, sim, e de um macacão cor de pêssego, de pernas largas, feito de um tecido jersey muito leve, que ela usava e que estava, então, muito na moda. Sei que era bonita, mas não consigo recordar-me do seu rosto. Tento, mas por mais que me esforce não consigo vê-lo, nem sequer imaginá-lo e questiono-me como é que um rosto que não lembro pode assombrar-me assim o pensamento.

22 comentários:

  1. Talvez não seja bem o rosto, que não recordas, que te assombre o pensamento, mas as memórias dessas conversas murmuradas, sobre males terríveis que não entendias, e pairavam no ar, como uma ameaça à vida da jovem Filomena...


    Beijinhos, Luísa.

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    1. A memória é uma coisa curiosa. Fixa certos detalhes sem que eu percebe bem porquê.

      Bom domingo, Janita.

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  2. pois, tal como a Janita, não sei se o que mais lembramos são rostos. A memória selecciona o que quer ou lhe é mais impressivo, por este ou aquele motivo. E os motivos são bem diversos.

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    1. Diverso e, por vezes, incompreensíveis motivos, bea.
      Bom domingo!

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    1. E às vezes dou conta que mais do que recordar esqueço muito, Gracinha.
      Bom domingo.

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  4. São os ecos em ti que perduraram talvez. Que te pertencem a ti e não a ela.
    A história dos outros evoca em nós tantas coisas...

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    1. Sem que percebamos bem porquê, Boop.
      :)
      Bom domingo!

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  5. Estou de volta aos blogs.
    Gostei de ver o seu.

    Saudações poéticas!

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    1. E gostei de o ver por cá de novo, Vieira Calado!
      Bom domingo.

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  6. texto bem torneado, Luisa! Luisa tem talento :)
    eu aborreço-me quando não me lembro dos rostos, e acontece muitas vezes, tenho de ver as pessoas várias vezes, e mesmo assim…
    então agradeço muito às máquinas fotográficas e aos telemóveis que tiram fotos!

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    1. Obrigada Ângela! Eu tenho uma memória muito fraquinha. Para nomes de pessoas, então, sou uma desgraça. E há episódios da minha vida que por vezes me contam e eu não consigo fazer a menor ideia deles.
      Bom domingo!

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  7. Acontece!
    Ficou-te na memória o macacão e isso foi o suficiente para escreveres um belo texto!

    Abraço

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    1. Há detalhes que se fixam, nem percebo bem porquê.
      Bom domingo, Rosa dos ventos.

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  8. ver com os outros sentidos.
    os olhos também se enganam...

    abraço

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  9. A memória é sensível a outros sentidos, sim. Aos cheiros, por exemplo.
    Bom domingo, Manuel Veiga!

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  10. é incrível a quantidade de memória que conseguimos armazenar e curioso que consegues lembrar a roupa mas não o rosto :) lembrei-me agora dum colega de escola que tinha um problema estranho de em certa altura o maxilar ficar preso e ele ficava aflito de boca aberta, e nós corríamos todos para ele para o tentar ajudar...

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    1. Há detalhes que nos marcam, nem sabemos bem porquê. Mas a minha memória anda muito frouxa, Mau-tempo. :)

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  11. Engraçado, como retém os certos pormenkrrs de momentos vividos e de pessoas que não vimos há anos. Também tenho desses flashes de certas pessoas e por vezes, hoje, ao cruzar-me com elas, nem as reconheço. Talvez por serem memórias sem rosto...

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  12. Talvez, GM. E também há pessoas que me falam, ou de quem me falam, e eu não consigo lembrar-me de nada, mas mesmo nada relacionado com elas. Tenho a memória cheia de buracos que nem um queijo gruyère. :)

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