sábado, 10 de novembro de 2018

Flirt


A janela da biblioteca de João Xavier abria quase de frente para a janela da sala de Maria Alice. Cada um, do seu lado da rua, podia observar o outro e o caso é que se observavam diariamente. Nos dias em que, por coincidência, abriam as janelas em simultâneo, cumprimentavam-se com um sorriso, por vezes um aceno de mão. João Xavier sentava-se junto à vidraça enquanto lia o jornal. Maria Alice, do lado de dentro da sua, folheava uma revista. Noutras vezes, eram livros que cada um trazia para junto das janelas. Nos dias quentes de verão, ficavam abertos os vidros e, não fosse o rumor dos pássaros nos ramos mais altos do plátano que se erguia à esquerda da porta de entrada da casa de João Xavier, quase poderiam ouvir o som das páginas a virar entre os seus dedos. Quando chegavam as chuvas, só as persianas se abriam. Ainda assim, através da cortina de pequenas gotas de água que deslizavam vidros abaixo, um e outro trocavam olhares de janela a janela. Se Maria Alice, retida noutros cómodos da casa passava um ou dois dias sem vir à janela da sala, já João Xavier se inquietava com a sua falta. E o mesmo sucedia com Maria Alice para quem a ausência de João Xavier fazia crescer em si uma desmesurada saudade. Porém, tanto quanto desejavam ver-se à janela, assim evitavam cruzar-se na rua. Gostavam daquela espécie de namoro silencioso e prudente que florescia de forma frondosa na sua imaginação, mas que sabiam condenado se ousassem regá-lo de realidade.

14 comentários:

  1. Tão real, mas tão real, este texto... que quase me revejo nele!

    :)

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    1. Entre o real e o fictício há uma estranha relação, Janita. :)

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  2. As memórias que me trouxe esse flirt de janela:). Tivemos assim um. Era um jovem universitário que nunca vimos senão até à cintura, sentado à secretária onde, supúnhamos, estudava; nunca o encontrámos na rua e espreitávamos em cacho a janela do outro lado da rua. Um flirt colectivo. Que esqueci até agora.
    Há coisas assim, bolas de sabão que a realidade desmancha.

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    1. Quantas histórias de paixonetas assim estão guardadas no fundo das nossas memórias, não é, bea?
      Gostei de saber desse flirt coletivo. :))

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  3. Como interna num colégio de religiosas, a partir do enorme pátio do recreio, divisava de longe, com as minhas companheiras, os estudantes hospedados ou na sua própria casa nas suas janelas ou movimentando-se na rua bem lá ao fundo.
    Era uma festa!

    Abraço

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    1. Ora bem, Rosa do Ventos, mais paixonetas alimentadas de olhares. :)

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  4. Imaginar esse namoro é recordar um pouco dos que vivemos também... Ação que se repete.
    Abraço.

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  5. Não tenho essa "sorte"... já que na janela em frente às vidraças do meu escritório só costumo avistar a vizinha do outro lado da rua que tem a mania das limpezas... já que repetidamente a vejo vir à janela a sacudir freneticamente o pano do pá!
    Não é nada romântico...

    Beijinhos em dia de domingo chuvoso
    (hoje obviamente não vi a vizinha)
    (^^)

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    1. Ahahaha, Afrodite! Realmente uma vizinha com mania das limpezas não é o que se deseja para alimentar a paixão. :))

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  6. A Luisa é realmente uma boa observadora do quotidiano e tem sensibilidade para entender a poesia das pequenas histórias, vividas pelas pessoas comuns, que não experimentam grandes aventuras.

    Pessoalmente mantive muitas dessas paixonetas, que a Luisa tão bem descreve. Normalmente, ocorriam no metropolitano. Todos os dias viajava com aquela pessoa especial. Ela entrava em S. Sebastião e saia nos Restauradores e eu continuava até à Baixa Chiado. Olhávamos nos sorrateiramente por cima dos livros e só quando ela saía nos restauradores, eu dentro da segurança da carruagem tinha a coragem de lançar um olhar mais descarado. Mantive muitas destas paixonetas secretas ao longo de anos. Hoje evito-as. Creio que sei de mais acerca de sexo casual para voltar a fazer esses pequenos e inocentes jogos.

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    1. Esta é uma historieta imaginada, LuisY, mas tantas vezes a realidade se confunde com a ficção. E vice-versa. :)

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