terça-feira, 25 de junho de 2013

Ouvinte

Ouvia. Todos os dias ouvia as histórias dos outros. Havia sempre um rol de queixas que alguém tinha para fazer. De si próprio pouco falava. Desabituara-se disso. Tantos eram os desabafos que os outros lhe traziam que, aos poucos, foi tendo cada vez menos hipótese de falar de si. As falas dos outros sobrepunham-se à sua e enchiam-lhe os ouvidos com tanto que tinham sempre por contar. 

Contavam das dores que tinham. Das doenças que os exames revelavam. Dos medicamentos que tomavam. Das dietas que faziam. Das guerrilhas profissionais. Das histórias contadas pelos vizinhos. Das conquistas amorosas mais recentes. Todos os dias ouvia as histórias dos outros. Em muitos dias eram histórias repetidas. 

Sempre tivera uma grande aptidão para ouvir e todos se aproveitavam disso. Falava cada vez menos e ouvia cada vez mais. Por vezes sentia que, de tanto ouvir, chegaria o momento em que não conseguiria conter tantas histórias e assustava-se com o que poderia suceder-lhe. Imaginava-se a rebentar como um balão. Em alguns momentos parecia-lhe não aguentar mais um queixume sequer. Nem mais uma gabarolice. Nem mais uma regateirice. Nem mais um relato. Nem mais uma palavra. Mas, preso àquela vida, dia após dia, continuava ouvindo.

Certa manhã, sentiu-se estranho ao acordar. Quando se olhou ao espelho viu que, no lugar da cabeça, tinha apenas uma orelha. 

10 comentários:

  1. Um mini conto kafkiano, mas com mais piada do que os do escritor... :)

    Beijocas!

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  2. Imaginação sem limites, luisa.
    Excelente!!

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  3. Ouvia bem e via mal. Se tiver que usar óculos vai ser um problema...
    :)

    Quanta inspiração. Parabéns!

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  4. Gosto tanto das tuas histórias :)

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  5. eheheheheh Gostei e faz-me lembrar alguém, apesar de ter um amigo que me chama tagarela, sou mais de ouvir que contar...será que qualquer dia sou só uma orelha? Medoooooooooo!

    Beijinho :)

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  6. Final surrealista, Luísa! BOM!

    Beijinhos de quem também já foi quase só orelha...

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  7. Há pessoas assim, ouvem tanto os outros que não têm quem as ouça!

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  8. "A função faz o orgão" !
    ... ou, ... eu diria o contrário da Ana.

    Hã pessoas (em grande maioria) que "não sabem" ouvir !
    Na ânsia de mostrar o que sabem (ou julgam saber), nem deixam os outros falar e quando têm que ouvir, na realidade não o estão a fazer, mas sim a pensar no que irão dizer a seguir !
    ... Isto é muito mais comum que o que possa parecer !
    Saber ouvir é muito mais importante do que falar !!!
    (está no bom caminho, maria!) :))
    .

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  9. É sempre um prazer ler os seus pequenos textos sempre com finais surpreendentes

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