Na cor do dia.
A chuva acordou as formigas aladas que agora se passeiam no quintal, se agarram às redes mosquiteiras das janelas, se afogam nas poças de água dos caminhos. Vinde pássaros, que o meu pátio é hoje a vossa mesa, o repasto promete e aqui não há armadilhas.
No Parque Natural da Ria Formosa, na parte que cabe ao território do concelho de Loulé e pelos tais passadiços de Loulé Litoral.
Os trilhos de natureza foram acrescentados com passadiços. Ainda não os tinha percorrido desde o incremento e a minha manhã não foi suficiente para os completar. Não foi, porque não quis. Preferi andar a passo lento, aqui e ali a passo parado, acrescentada eu também de um olho suplementar, tentando fixar horizontes, vegetação, bichos e afins. Entre a fauna frequentadora do local, contam-se bípedes, quadrúpedes e rodados para citar apenas aquela que segue os trilhos. As regras mandam, entre outras coisas, que se circule pela direita e que não se faça barulho. E está bem assim. Tanto os passadiços de madeira, como os troços de terra e gravilha, fazem ressoar passos e rodas, alertas bastantes para que saibamos o que atrás de nós vem. A dado passo, ainda assim, comecei a ouvir um toque estranho, um prut prut compassado, que se foi aproximando, passando a pruut, pruut, pruut mais audível quando me ultrapassou. Percebi então a origem da buzina, audível mas invisível, toda ela incorporada no corredor de camisola azul e calções pretos.
Este sol baixo de outubro abrasa-me a pele. Refugio-me na sombra, ajeitando na areia a cadeira de praia. Fecho o livro por um momento e fico a observar os dois pescadores de ocasião que se atarefam a desenlear a linha, um segurando na cana, o outro procurando recolher o que a mais se desenrolou e se enrola agora na espuma das ondas que não dão tréguas. Alguns passeantes de beira mar param por instantes para ver o enredo, porém tarda o desenlace. Desistem do final da história e prosseguem a caminhada. Lembro-me de que ainda quero fazer uma compra antes do almoço e trato de recolher os meus adereços, sacudir o excesso de areia, ajeitar o chapéu na cabeça e dar por concluída a minha manhã balnear. Também eu não ficarei para ver como se resolverá o enredo da linha de pesca. Menos mal, que enredos, tal como os chapéus do outro, há muitos.
No banco de pedra, canadianas encostadas, gorro de lã preto, a mulher que teve dez filhos apanha o sol da tarde e estranha a minha obsessão fotográfica com o jorro de água que sai da fonte. Teve dez filhos, conta, mas quatro raparigas morreram. E é de morte que mais fala. Conta-me dos que por ali morreram, dos que por ali vão morrendo. Da mulher daquele senhor que passou rua acima, da que morava ali adiante naquela casa amarela, da que foi para o lar e durou menos de uma semana. Os filhos não tomam conta, vão para o lar e morrem logo. Quer saber se na minha terra também há gente que morre. Fala-me dos sacos de medicamentos que tem só para ela, mostra-me com a mão o tamanho que têm. Não consegue já ficar muito tempo em pé, mas de resto as análises que há pouco mais de um mês realizou mostram que está tudo bem. Assim disse o médico, que muitos mais novos não tinham análises tão boas. Vai fazer anos em breve. Quantos, pergunto-lhe. Ah, o meu filho é que sabe.