terça-feira, 4 de agosto de 2020

Embuço

Na clínica, aos acompanhantes está agora reservada, como sala de espera, a rua. O sol das nove da manhã já se mostra impiedoso e procuro por isso um poiso à sombra. O rebordo lajeado do muro que contém um projeto de jardim serve-me de assento e ali fico, solitária, fotografando com o telemóvel os pés calçados de sabrinas vermelhas, para entreter o tempo, até que se aproxima a acompanhante do doente que entrou entretanto. Mede a distância, sacode com a mão alguma poeira solta no poial e senta-se mais ou menos a metro e meio da minha saia. Mantém a máscara, visivelmente usada para além do recomendável, e dá início ao rol de lamentações associadas aos efeitos da pandemia. Os correios não funcionam, anda tudo atrasado, tanto que as faturas da luz e da água já chegam fora do prazo de pagamento. Vê-se obrigada a ir para as filas, longas e espaçadas, para a resolução presencial das dívidas. Suspira questionando-se sobre o fim deste mal que nos assola, sobre uma data para a respetiva vacina, sobre um tratamento definitivo cuja demora lastima. Eu já não tenho idade, prossegue, está visto que terei de viver o resto dos meus dias com o rosto embuçado.


22 comentários:

  1. Não foram somente fotografadas as sabrinas vermelhas, o retrato emocional da desgostosa senhora ficou bem explícito.
    Enquanto não for obrigatório, a mim não me verão embuçada na rua.

    Boa noite, Luísa!

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    1. Até já uso máscara na rua, Janita. Nem sempre, mas se me parece que me vou cruzar de perto com demasiadas pessoas ou se estou a entrar sucessivamente em várias lojas, acabo por mantê-la.

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    2. Saio de casa com ela enfiada - não na orelha porque já perdi várias assim - no braço a fazer de pulseira, se lobrigo gente de quem me não consigo desviar, coloco-a, e, novamente, quando entro no supermercado ou qualquer outro estabelecimento. No carro, nunca. Com a respiração filtrada, mal consigo respirar. Fico ofegante. :(

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  2. Eu ter-lhe-ia lembrado que os médicos e as enfermeiras, em salas de cirurgia, andam embuçados horas e horas há anos e anos sem reclamar!! E que agora usam o “embuço” todos os dias.

    No outro dia, cheguei a casa cheia de calor. Não me tinha sentido bem no supermercado. A máscara que tinha escolhido era demasiado quente. Quando cheguei a casa o meu vizinho estava a entrar no carro e eu ainda tive tempo de me queixar da máscara, sem lhe explicar, todavia, que me tinha sentido mal. Eu nunca reclamei sobre as máscaras!! Mas neste dia... E ele disse-me: “E a A. (sua mulher e enfermeira) que usa duas máscaras, mais a viseira, durante horas e horas?! Não sinto empatia...” Nem o deixei acabar... admiti logo que tinha precipitada e a razão de ter perdido a calma habitual... : )))))

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    1. É mesmo, Catarina. Penso muitas vezes nisso. Como é que os profissionais de saúde aguentam?
      :)

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  3. Macau (MUST) está a desenvolver uma vacina.
    E conta testá-la já no próximo mês.

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    1. Pedro, espero que apareçam muitas (e que não nos façam mal)! E que se concretize o ditado de que não há fome que não dê em fartura

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    2. Vacinas, tratamentos, o que for. Venha!

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  4. Realmente isto está tudo num caus! Gostei de a ler!:/
    ***
    Ciclos constantes ...

    Beijo e um excelente Dia

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  5. pelo que lemos a Luísa não tinha os ouvidos embuçados (ainda não chegámos a isso) e transmitiu muito bem o desalento da senhora da "sala de espera" naturalmente ventilada
    pelo sol da manhã!
    abracinho

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  6. Retrato de um país em pandemia.
    Desabafos de quem não busca respostas, quer apenas ser ouvida. E, Luísa, tu ouviste-a bem!
    Só uso máscara em locais públicos fechados. E sinto-me sempre sufocar. Odeio!
    Beijo.

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    1. Uma pessoa acaba por se habituar, Teresa. Embora haja máscaras mais difíceis de suportar com o calor.
      :)

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  7. e até que ponto a dita senhora não terá razão.

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    1. Esperemos que não, bea. Esperemos que a ciência consiga dar conta disto.

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  8. Este espírito de lamúria e desgraça também não leva a nada. Mas é um espírito muito português e em que muita gente assenta arraiais.
    A máscara é desagradável, é certo. Mas usando com consciência e moderação, tolera-se. Até ao dia em que tudo isto será ultrapassado e alegremente a mandaremos "voar"!
    Temos que acreditar que será assim!

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  9. Longe vão os acordes do fado "O embuçado", completamente fora de contexto.

    Um bom fds, Luísa! :)

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    1. Outros acordes nos acompanham por estes dias, AC.
      Bom domingo!

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