terça-feira, 16 de outubro de 2018

Impossível


No metro, a moça que estava sentada na fila de bancos oposta à minha tinha uma tatuagem na perna. Vestia calções brancos, curtos, e as palavras, inscritas em letra serifada, estendiam-se da coxa até próximo do tornozelo. Eram como uma fita, das que agora se usam sobre a costura externa das calças, que a sublinhava de alto a baixo.

Uma tatuagem é como um anúncio. Desperta inevitavelmente a atenção, queremos perceber do que trata. Mas uma tatuagem é parte do corpo de alguém e mesmo exposta, como a da perna da moça dos calções brancos, releva de alguma intimidade e há uma certa reserva que nos detém, que nos refreia o olhar.

Ali estavam, pois, uma série de palavras, artisticamente desenhadas numa fonte old english, e eu a tentar lê-las disfarçadamente. A coxa dava início à frase com o impossível e, até pela horizontalidade que permitia, deixou-se ler com alguma facilidade. Já a partir da curva operada pelo joelho, o exercício complicava-se, não só pela posição mas também pela passageira, sentada ao lado daquele corpo feito página, que ocultava parcialmente o resto do texto.

Eu lá me esticava toda pelo canto do olho, varria depois o resto da carruagem como quem se distrai com a presença de todos e cada um, demorando a vista ora nos passageiros agarrados ao varão metálico, ora nos que entravam e saíam a cada estação, mas impaciente para voltar à perna da moça. E voltava, uma e outra vez, até que consegui concluir a leitura mesmo antes do livro se levantar e sair no seu destino. Só o impossível me interessa.

Por sua vez, o meu destino não demorou muito e uma ou duas estações depois, enquanto saía do metropolitano, pensava que o tal impossível era bem capaz de ter a mesma natureza dos muitos impossíveis que povoam os sonhos.

26 comentários:

  1. Belo texto!
    Um sonho que não seja povoado de interesses tidos como impossíveis, não é sonho.
    É um anseio pelo qual nem vale a pena o esforço da concretização...


    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E é esse impossível que nos seduz, Janita. :)
      Obrigada!

      Eliminar
  2. Brilhante seu texto!
    Impossível ser melhor!... :) bj

    ResponderEliminar
  3. Diz o povo que não há impossíveis.
    Pelo menos para escrever excelentes textos, não há!

    Beijinhos, Luísa :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Até o alcançarmos, o impossível assim permanece. :)
      Obrigada Maria Eu.

      Eliminar
  4. Maravilhoso de ler:)) Adorei...

    Bjos
    Votos de uma óptima Quarta - Feira

    ResponderEliminar
  5. Respostas
    1. As viagens de metro são ricas em curiosidades, Tétisq. :)

      Eliminar
  6. muito bem (d)escrito este relance de impossíveis...

    ResponderEliminar
  7. Imaginei essa longilínea perna.Suponho que pela qualidade do texto.

    ResponderEliminar
  8. Tão bom, Luísa :) imaginei a cena ao pormenor, sentada ao seu lado :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E eu gostei muito da sua companhia nesta viagem, flor. :)

      Eliminar
  9. Cinematográfico e muito bem realizado, luisa. Adorei o voz-off.

    ResponderEliminar
  10. Nunca me imaginei como realizadora de cinema, Teresa... Obrigada. :)

    ResponderEliminar
  11. Muito bom, Luísa! Já me aconteceu algo de semelhante na praia, uma jovem em biquini que na face interna de uma das coxas tinha um relambório que era seguramente maior do que uma estrofe dos Lusíadas. Mas senti-me inibido e não tive lata de me aproximar o suficiente para ler :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, João Ventura. :) Pois na praia também já vi uma uma mulher que tinha uma frase tatuada em volta da coxa. Claro que não me foi possível tirar conclusões sobre tal conteúdo. Parece-me que está muito em voga esta escrita corporal. O meu cabeleireiro, por exemplo, tem também uma frase na face interna do antebraço. Embora em letras pequeninas, essa já consegui decifrar e diz algo como "Fomos e seremos felizes".

      Eliminar
  12. Luisa

    Belíssimo e divertido texto. Adoro estas suas crónicas do quotidiano, que me recordam os artigos que a Maria Judite de Carvalho publicava nos jornais.

    Creio que o Metropolitano é dos melhores sítios que há para observar a humanidade. Nunca me canso de viajar de metro, pois distraio-me imenso a observar a imensa variedade de pessoas com as quais viajamos durante 8 ou 16 minutos. Talvez seja aquela barulheira infernal que nos permite uma concentração total na observação de quem está ao lado.

    Bjos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É o Metropolitana e são as filas nas caixas dos supermercados, LuisY. Fontes inesgotáveis de pequenas histórias. :)

      Obrigada pelo apreço.

      Eliminar