sexta-feira, 25 de junho de 2021

Corpo de delito

 


Em total transgressão das normas vigentes, o cedro agitou-se, cingiu a lua e acariciou-a ao ritmo do vento leve que se fez sentir ontem à noite. Não há como negar. Ficou registado. Não se sabe ainda que consequências terá na pandemia o tresloucado ato.


segunda-feira, 21 de junho de 2021

La bicyclette

 


Lucas

 

Ao lusco-fusco, Lucas ziguezagueia pela rua na sua bicicleta a pedal. Distancia-se da mãe que leva os dois cães pela trela e grita avisando-o de que não pode ir assim ocupando a estrada toda. O irmão, mais novo, ainda com duas rodinhas de apoio à roda traseira, não se aventura como ele. Vai muito direito pela sua direita e cumprimenta-me. Boa noite. Boa noite, sorrio. Entretanto, a mãe do Lucas segue caminho fechando a fila e gritando uma vez mais pelo nome do filho mais velho.


domingo, 20 de junho de 2021

Passeio de domingo (535)

 


Passeio com chuva miudinha, muito pássaro e pouca gente.











Desaparecimentos

 

Por muito que olhe para a estante, que passe o dedo pelas lombadas afastando os volumes uns dos outros, que abra as gavetas da secretária, que espreite para dento do armário, que enfie as mãos nos sacos e nas malas que tenho pendurados no cabide, que revolva o gavetão do armário da TV, que remexa nos papéis da primeira gaveta da cómoda, não há meio de encontrar o livro que li, não há muito tempo e que até anotei no caderno para contrariar os esquecimentos. Dei pela sua falta quando o quis arrumar no lugar que lhe caberia, à esquerda do segundo volume da história, entretanto terminado. Nada a fazer. Desapareceu de circulação. Poderia, talvez, amarrar uma fita à perna da cadeira com uns nós bem apertados, como manda a superstição, que diz que amarrando dessa forma os testículos do diabo a coisa perdida irá reaparecer. Mas, pobre diabo, que as sofre provavelmente sem razão. Também no ano passado me desapareceu uma corrente, daquelas que servem para pendurar os óculos e agora também se usam para segurar as máscaras quando precisamos de as retirar momentaneamente. Procurei-a por todo o lado, até nos mínimos recantos das minhas malas de mão, e nada. Conformei-me e arranjei outra corrente. Dias atrás, sem que tivesse percebido de onde surgiu, apareceu-me, caída no chão do quarto, sobre o tapete que semanalmente sacudo energicamente à varanda, a corrente perdida. O diabo não foi, acredito eu, pois não cheguei a atar qualquer fita que o obrigasse à devolução do objeto perdido. Talvez o tempo tenha um espírito misterioso, um fantasma brincalhão que, vai não vai, resolve moer-me o juízo, esconder-me objetos para mos devolver quando já me esqueci deles. Aguardarei, portanto, serenamente.

domingo, 6 de junho de 2021

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Ensaio

 

Podes nem acreditar, mas hoje cantou por aqui uma cigarra. Foi há minutos. Estendia eu a roupa branca na corda do terraço, aproveitando o sol e o vento que se enleiam no azul do céu; estava o vizinho de Lisboa dando instruções ao homem que, pelos vistos, lhe vai realizar não sei bem que obras em casa; quando do lado da alfarrobeira chegou o som ainda meio engasgado de uma cigarra solitária. Junho mal começou e admito que é um pouco cedo para estes concertos. Foi engano dela talvez. Ou então está ansiosa pelo verão e resolveu sair da terra, espreitar o ambiente e desentorpecer as asas com um pequeno ensaio.